O holocausto manicomial:
trechos da história do maior hospício do
Brasil
Thayara Castelo Branco
Advogada, Mestre e Doutoranda em Ciências Criminais
pela PUCRS
Colunista do site www.justificando.com
Texto
transcrito de www.justificando.com
Sessenta mil mortos [1].
Esse é o resultado do tratamento manicomial executado no Hospital
Colônia de Barbacena/MG [2]. Fundado em 1903 com capacidade para 200
leitos, o hospital contava com uma média de 5 mil pacientes em 1961 e ficou
conhecido pelo genocídio em massa ocorrido especialmente entre as décadas de 60
e 80. Trens com vagões lotados [3] (chamados de “trens de doido”), semelhantes aos dos campos de concentração
alemães, despejavam diariamente os “dejetos humanos” para “tratamento”
no hospital.
“Lá suas roupas eram arrancadas, seus cabelos raspados e, seus
nomes, apagados. Nus no corpo e na identidade, a humanidade sequestrada,
homens, mulheres e até mesmo crianças viravam Ignorados de Tal”; “(…) comiam
ratos e fezes, bebiam esgoto ou urina, dormiam sobre capim, eram espancados e
violentados até a morte” [4].
Estima-se que “cerca de 70% dos internados não
tinham qualquer diagnóstico de doença mental”. O hospital era destinado para a
contenção dos indesejáveis, com função de higienização e sanitarismo da
localidade, ou seja, sob as bases da teoria eugênica [5] eram enviadas “pessoas não agradáveis e
incômodas para alguém com mais poder, como opositores políticos,
prostitutas, homossexuais, mendigos, pessoas sem documentos, epiléticos,
alcoolistas, meninas grávidas e violentadas por seus patrões, esposas
confinadas para que o marido pudesse morar com a amante, filhas de fazendeiros
que perderam a virgindade antes do casamento, entre outros grupos
marginalizados na sociedade”. Em resumo: era preciso livrar-se da
escória, do mal social e do incômodo em um local onde ninguém pudesse ter
acesso. Era a “barbárie” humana.
“Os pacientes do Colônia morriam de frio, de fome, de doença.
Morriam também de choque. Em alguns dias os eletrochoques eram tantos e tão
fortes que a sobrecarga derrubava a rede do município. Nos períodos de maior
lotação, 16 pessoas morriam a cada dia e ao morrer, davam lucro. Entre 1969 e
1980, mais de 1.800 corpos de pacientes do manicômio foram vendidos para 17
faculdades de medicina do país, sem que ninguém questionasse. Quando houve
excesso de cadáveres e o mercado encolheu, os corpos passaram a ser decompostos
em ácido, no pátio da Colônia, na frente dos pacientes ainda vivos, para que as
ossadas pudessem ser comercializadas” [6].
E assim, dos ditos “loucos” enclausurados no Colônia, o Estado comia e roía até
os ossos!
O psiquiatra italiano Franco Basaglia [7],
pioneiro na luta antimanicomial na Itália, esteve no Brasil e conheceu o
Colônia em 1979. Na ocasião, chamou uma coletiva de imprensa e desabafou: “Estive hoje num campo de
concentração nazista. Em lugar nenhum do mundo, presenciei uma tragédia como
essa” [8].
Os números exorbitantes e silenciados (por
mais de 50 anos) das execuções sumárias, frias e violentas que ocorreram no Hospital
Colônia de Barbacena superam, e muito, as mortes registradas e ocultadas na
ditadura militar brasileira (dentre índios, camponeses, perseguidos políticos
etc). Superam inclusive os números das mais sangrentas ditaduras da América
Latina, Chile com mais de 40 mil e Argentina com mais de 30 mil mortos. Que
Estado de Direito atual é esse? Como se pode permitir a prática e a ocultação
desse genocídio por mais de 50 anos sem uma resposta estatal efetiva e
humanizada para essas vítimas e seus familiares?
Diante desse cenário nos parece claro o que
Foucault [9] chamou de “emergência das técnicas de normalização”. Que
são poderes não somente entendidos como efeito de conexão entre saber médico,
judiciário e político, mas que se constituiu com autonomia e regras próprias,
atravessando e estendendo sua soberania na sociedade, sem se apoiar
exclusivamente em nenhuma instituição específica.
Os poderes de normalização utilizam um
discurso que não se organiza apenas em torno da perversidade, mas do medo, da
moralização, da contenção e da hipocrisia.
Hoje restam menos de 200 sobreviventes do
Colônia. Alguns deles estão e ficarão internados até o fim da vida porque não
conseguem estabelecer vínculos sociais, em decorrência dos excessos de torturas
e traumas sofridos no hospício e por não terem mais nenhum contato familiar.
Outros sobreviventes foram transferidos para residências terapêuticas em busca
de dignidade humana e para reaprender a tomar posse de si mesmos. O certo é que
os que não morreram de fato, morreram em essência, em alma, como pessoa humana.
Não há muito o que ser feito para recuperar essas estruturas já mortificadas.
Nesse quadro esquizofrênico tem-se: um Estado
apático, omisso, permissivo, perverso, autorizador e co-autor dessa eterna
história manchada de muito sangue e horror. A sociedade, por sua vez, em
alguns poucos momentos sensibiliza-se com outras tragédias da história mundial,
mas desconhece o que ocorreu no seu quintal, às suas vistas. Enquanto
micropoderes de normalização, quando sabem da sua história, usam o seu
confortável tapa-olho fingindo não fazer parte disso ou pior, seus silêncios aplaudem
e validam a eliminação dos indesejáveis sociais (até hoje), afinal, louco bom é
louco morto, né?!.
E enquanto isso na sala de justiça… o vazio e
a mudez dos inocentes gritam por liberdade e humanidade nas inúmeras masmorras
psiquiátricas existentes pelo país afora.
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