segunda-feira, 2 de setembro de 2019

HUMANITAS Nº 87 - SETEMBRO DE 2019 – PRIMEIRA PÁGINA

O IMPERADOR DO SURREALISMO
Galatea de las esferas (ao lado) faz parte de uma série de quadros do pintor espanhol Salvador Dali (1904/1989)), em homenagem à sua mulher, a russa Elena Diakonova, também conhecida como Gala  LEIA MAIS NA PÁGINA 8 –
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Veja na PÁGINA 6, o texto Pessimismo e Realidade (parte 4) da escritora Divina de Jesus Scarpim (São Paulo/SP)
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Na PÁGINA 5, a continuação do artigo de Araken Vaz Galvão (Valença/BA) sobre o despertar da África
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Leia, na PÁGINA 7, o Especial do Humanitas sobre Antero de Quental, o renovador da poesia portuguesa

HUMANITAS Nº 87 - SETEMBRO DE 2019 – PÁGINA 2

EDITORIAL
Continuidade da luta

Setembro abre suas portas e este Humanitas entra no primeiro mês do seu oitavo ano de existência.
A luta em favor das causas humanas continua em voga nas páginas desta publicação, ainda que agora não exista mais o jornal impresso.
Neste setembro buscamos armas novas para fortalecer a nossa luta a favor do homem como animal artístico, cultural, e, também, para mostrá-lo em sua verdade nua e crua: animal predador e amante da violência e das guerras de conquista.
Essa é a raça humana. Uma raça cheia de incoerências. Uma raça que acredita em um deus, cujos representantes dizem amar o próximo lá de dentro do coração, porém, ao mesmo tempo, estupram essa ideia, utilizando as mais variadas armas de extermínio, de homofobia, de perseguição, discriminação e preconceitos.
O leitor continuará a ver neste Humanitas temas os mais variados. Desde assuntos históricos e culturais, até poesias de poetas famosos ou não, do Brasil e do Mundo.
Nossos articulistas poderão ser criticados, mas nunca censurados. As ideias que eles propagam em seus escritos estão inseridas dentro de nossa linha editorial de apoio ao laicismo, à liberdade de pensamento e contra os extremistas amantes da violência e do fascismo.
Assim, neste setembro, entramos revigorados para viver mais um ano junto aos nossos leitores – agora virtualmente – com a certeza de que estamos no caminho certo, mas também com a honestidade para reconhecer erros que possamos cometer durante esse período.
Que juntos – leitores e articulistas – coloquemos o homem dentro de sua evidência comum sempre a seguir o lema "nada acima do ser humano e nenhum ser humano abaixo de outro".
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O TRISTE APEGO À RELIGIÃO
Colaboração de Décio Schroeter - Porto Alegre/RS

Na maior parte dos casos, os homens só se apegam à religião por hábito.
Eles jamais examinam as razões pelas quais adotaram sua religião, nem os motivos da sua conduta, nem os fundamentos das suas opiniões.
Desde modo, a coisa que eles consideram mais importante tem sido sempre aquilo que eles mais temem aprofundar.
Eles seguem o caminho que seus pais traçaram para eles.
Eles creem, porque na infância lhes disseram que é necessário crer.
Eles têm esperança, porque seus ancestrais tiveram esperança.
Eles temem, porque os seus antecessores temeram.
Eles quase nunca se dignam a dar-se conta dos motivos da sua crença.
É assim que as opiniões religiosas, uma vez adotadas, se mantêm durante uma longa sequência de séculos.
É assim que, era após era, os povos retransmitem ideias que jamais foram examinadas.
Eles creem que a felicidade está ligada a instituições que, se forem examinadas mais de perto, se revelarão como a fonte da maior parte dos seus males. A autoridade ainda vem em ajuda dos preconceitos dos homens; ela lhes impede de fazer o exame; ela os força à ignorância; ela está sempre disposta a punir todo aquele que tentar rejeitar a ilusão.
Nós encontramos em todos os séculos homens que, livres dos preconceitos, ousaram mostrar a verdade.
Mas o que pode a sua voz fraca contra os erros que são absorvidos desde a primeira infância, confirmados pelo hábito, autorizados pelo exemplo, e fortalecidos por uma política que é frequentemente cúmplice da sua própria ruína? 
As vozes da impostura reduzem logo ao silêncio aqueles que querem protestar em nome da razão (da obra “Le Christianisme Dévoilé” (1761) - Paul-Henri Thiry, o Barão d’Holbach).

JORNAL HUMANITAS Nº 87 - SETEMBRO DE 2019 – PÁGINA 3

REFÚGIO POÉTICO – CARTAS DOS LEITORES

CHEGA DE SAUDADE
João Gilberto

Vai minha tristeza
E diz a ela
Que sem ela não pode ser
Diz-lhe numa prece que ela regresse
Porque eu não posso mais sofrer
Chega de saudade, a realidade é que sem ela
Não há paz, não há beleza, é só tristeza
E a melancolia que não sai de mim
Não sai de mim, não sai
Mas se ela voltar, se ela voltar
Que coisa linda, que coisa louca
Pois há menos peixinhos a nadar no mar
Do que os beijinhos que eu darei na sua boca
Dentro dos meus braços
os abraços hão de ser milhões de abraços
Apertado assim, colado assim, calado assim
Abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim
Que é pra acabar com esse negócio
de viver longe de mim
Não quero mais esse negócio de você viver assim
Vamos deixar desse negócio de você viver sem mim
Não quero mais esse negócio de você viver assim
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João Gilberto - foi um cantor, violonista e compositor brasileiro. Considerado um artista genial por musicólogos e jornalistas especializados, revolucionou a música brasileira ao criar uma nova batida de violão com influências do jazz para tocar samba: a "bossa nova" Nasceu em Juazeiro/BA em 10 de junho de 1931 e faleceu no Rio de Janeiro, em 6 de julho de 2019.
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GOSTO PARNASIANO
Gastão Torres

Agosto, mês das árvores despidas;
Os ventos, entre as moitas eriçadas,
Revelam um clamor de suicidas
E a contrição das almas condenadas.

Um funeral de folhas ressequidas
Desprende-se das últimas ramadas;
Contrasta no fulgor das avenidas
A solidão das noites prolongadas.

Definham os narcisos impotentes,
Crispando as longas pétalas dormentes
Na convulsão das flores moribundas.

Paisagem incolor de sóis fugazes,
Sem os matizes e os clarões vivazes
Das estações alegres e fecundas.
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Gastão Torres nasceu em Venâncio Aires/RS, em 7 de maio de 1926. Foi revisor do Correio do Povo; colaborou no extinto jornal O Dia com estudos literários e assuntos de economia histórica; na quarta página do Correio do Povo em 51/52 e, desde 1975, no Caderno de Sábado, posteriormente Letras e Livros, do mesmo periódico. Colaborou ainda no caderno Mulher da Folha da Tarde e na revista Cultura Contemporânea, Porto Alegre.
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CARTAS DOS LEITORES

Estou feliz de me ver tantas vezes no jornal Humanitas. É sempre bom que as pessoas gostem do que escrevo! Sempre é uma PUTA recompensa! Uma pena que o Humanitas impresso tenha deixado de existir. Pena mesmo, mas é esse o futuro no qual estamos vivendo. Tudo acaba tendo que ter a Nuvem como veículo. Divina de Jesus Scarpim – São Paulo/SP
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Vou sentir muita falta do Humanitas impresso. Era algo especial de ler. Para quem ama a leitura em papel, esse pequeno/grande jornal trazia até seus fãs inúmeras contribuições, e depois de ser manuseado podia ser entregue aos amigos que se interessavam pelos assuntos que eram divulgados. Ricardo de Almeida – Olinda/PE

HUMANITAS Nº 87 - SETEMBRO DE 2019 – PÁGINA 4

O tempo não passa para a memória
Rafael Rocha é jornalista e editor deste Humanitas. Atua na cidade
do Recife/PE

Quando eu era mais jovem não entendia o choro contido da minha mãe ao assistir a um filme, escutar determinada música ou ao ler um livro.
O que eu não sabia é que minha mãe não chorava pelas coisas visíveis.
Ela chorava pela eternidade que vivia dentro dela e que eu, na minha juventude, era incapaz de compreender.
O tempo passou e hoje eu fico emocionado diante das mesmas coisas. Tudo porque a memória é contrária ao tempo.
Enquanto o tempo leva a vida embora, a memória traz de volta o que realmente importa.
A memória eterniza momentos.
Crianças e jovens têm o tempo a seu favor e as memórias deles ainda são recentes. Para eles, um filme é só um filme; uma melodia, apenas uma melodia.
Ignoram como a infância e a juventude são cheias de eternidade.
A passagem do tempo nos faz envelhecer, nossos filhos crescem, e morre muita gente, amigos, parentes. Quanto mais vivemos, mais eternidades criamos dentro de nós.
Quando nos damos conta, os nossos túneis do tempo estão repletos daquilo que amamos, daquilo que deixou saudade, daquilo que doeu além da conta, daquilo que permaneceu além de nós.
A capacidade de se emocionar vem daí: quando nossos compartimentos são escancarados de alguma maneira.
Um dia, você liga o rádio do carro e toca uma música qualquer, ninguém nota, mas aquela música já fez parte de você – foi o fundo musical de um amor, ou a trilha sonora de um período de solidão e de fossa – e mesmo que tenham se passado anos, sua memória afetiva não obedece a calendários.
Ela não caminha com as estações.
E então, alguma parte de você volta no tempo e lembra aquela pessoa, aquele momento, àquela época!
Amigos verdadeiros têm a capacidade de se eternizar dentro da nossa memória.
É comum ver amigos da juventude se reencontrando depois de anos – já adultos ou até idosos – e voltando a se comportar como adolescentes bobos e imaturos.
Encontros de turma são especiais porque eles resgatam as pessoas que fomos: rapazes e moças cheios de alegria, engraçados, capazes de atitudes infantis e debiloides, como éramos há 30 ou 40 anos.
Descobrimos que o tempo não passa para a memória.
Ela eterniza amigos, brincadeiras, apelidos, mesmo que por fora restem cabelos brancos, artroses, rugas.
A memória não permite que sejamos adultos perto de nossos pais, pois eles nem percebem que crescemos.
Seremos sempre "as suas crianças", não importa se já temos 30, 40 ou 50 anos.
Para eles a lembrança da casa cheia, das brigas entre irmãos, das histórias contadas ao cair da noite ainda são coisas recentes, pois a memória amou e aquilo se eternizou.
Por isso é tão difícil se despedir de um amor ou de alguém especial que por algum motivo deixou de fazer parte de nossas vidas.
Dizem que o tempo cura tudo, mas não é tão simples assim.
O tempo acalma os sentidos, apara arestas, coloca um anestésico na dor.
Mas aquilo que um dia amamos tem vocação para emergir das profundezas, romper os cadeados e vir até nós de vez em quando.
Somos a soma de nossos afetos, e aquilo que amamos pode ser facilmente reativado por novos gatilhos: o enredo de um filme, uma música antiga, uma foto, um lugar especial.
Do mesmo modo, somos memórias vivas na vida de nossos filhos, cônjuges, ex-amores, amigos, irmãos. 
E quando a morte nos levar seremos lembrados eternamente por todos os que aqui ficarem, por todos aqueles que um dia participaram de nossas vidas.

HUMANITAS Nº 87 - SETEMBRO DE 2019 – PÁGINA 5

O despertar da África III
Araken Vaz Galvão é escritor e membro da Academia de Artes do Recôncavo. Atua em Valença/BA

No artigo anterior vimos como foi oficializada, entre as potências europeias, a partilha da África e como surgiu o primeiro país independente – dentro dos padrões ocidentais – do continente africano: a Libéria. Antes de tecer mais algumas considerações sobre este país, falarei sobre as duas tradicionais Áfricas que sempre existiram ou existiram desde tempos imemoriais.
O norte da África – também chamada de África Branca –, região onde estão localizados países milenares como o Egito, é composto, além deste, da Líbia, Tunísia, Argélia, Marrocos e Saara Ocidental, cuja origem dos povos – que também se perde nas brumas da formação da história da humanidade – e que formam entidades bastante diferenciadas das nações ao sul do Saara, que nasceram depois do processo de descolonização.
Naqueles países a população, ainda que muito miscigenada, é composta de pessoas de pele clara – entre nós seriam chamados de morenos e mulatos claros – de religião muçulmana, as quais influenciaram fortemente boa parte dos vizinhos ao sul, como foram os casos de Mauritânia, Mali, Sudão, Eritreia, Djibuti e Somália – todos da África Negra – e, em menor grau, vizinhos entre si, mais acentuadamente os países que surgiram no litoral do Oceano Índico.
Esse esclarecimento é importante porque os países da chamada África Branca possuíam – e conservaram depois de colonizados – identidade cultural própria, delimitada em espaços geográficos seculares; enquanto as colônias nascidas do processo de colonização esses importantes “detalhes”, não foram respeitados.
Poder-se-ia dizer que no primeiro caso as potências europeias decidiram colonizar o Marrocos, por exemplo, e o ocuparam como um todo.
No segundo caso essas potências simplesmente decidiram ocupar determinado trecho do litoral, onde poderiam construir portos seguros, apossar-se da desembocadura de determinado rio – como forma de dominá-lo em toda sua extensão.
Por isso quando se iniciou o processo de descolonização – após o término da II Grande Guerra – o Marrocos (por exemplo) permaneceu com seu território original.
Sua cultura e sua identidade nacional ficaram praticamente intocadas; enquanto os países da África Negra que nasceram daqueloutro processo, careciam, em sua totalidade, de identidade territorial, cultural e étnica, a qual – como vimos – tinham sido violentadas pelo processo de colonização.
Repete-se que aí está uma das origens da atual tragédia africana...
Sem desejar cair em uma exposição mecânica, podemos afirmar – grosso modo – que por volta do ano de 1400, século XV, portanto, a África se encontrava, do ponto de vista de acomodação geográfica das tribos, em fase de grande mobilidade, tribos do norte invadiam territórios do sul, as do leste ocupavam terras e escravizavam povos do oeste ou vice-versa.
Processo similar – também grosso modo – ocorrera na Europa, quando principados e reinados deixaram de existir e passaram a fazer parte de outros mais fortes, que invadiam as terras vizinhas, anexavam estados, submetiam regiões e populações inteiras.
Esse período de acomodação territorial das diferentes tribos africanas atravessou vários séculos, com o aparecimento de reinos, alguns de grande expressão, outros de vida efêmera.
Quando os primeiros europeus – os portugueses – aportaram em território da África as lutas tribais estavam ainda no auge. Guerras eram empreendidas não só para conquistar territórios, mas também para fazer escravos.
A chegada do homem branco só fez aguçar essa busca de trabalho servil. Entretanto, não é sobre esse período que desejo falar. Interessa localizar o momento histórico em que os países da África, como hoje conhecemos, começaram a surgir.
E com essa premissa, volto à Libéria. Quando foi proclamada sua independência, em 1847, uma das principais preocupações dos novos líderes foi atrair as tribos locais para o modo de vida ocidental.
Para isso suprimiram o tráfico de escravos, e no fim do Século XIX o novo estado estabeleceu definitivamente suas fronteiras, mediante tratados sob a proteção dos Estados Unidos, com a França e o Reino Unido, que tinham colônias nas imediações.
A capital do novo país recebeu o nome de Monróvia, em homenagem ao presidente dos Estados Unidos, James Monroe.
No início do século XX, por volta de 1909 – pouco antes de ser feita a concessão à Firestone – a Libéria obteve um empréstimo dos Estados Unidos, o qual, em contrapartida, passou a supervisionar a economia e a alfândega, sob a alegação de que era preciso saneá-la.
Foi nessa época também que o governo de Monróvia conseguiu estender sua autoridade ao interior do país. Depois da concessão a Firestone, logo após da primeira guerra mundial, a receita liberiana ficou novamente sob administração americana.
Entre as décadas de 60/70, os Estados Unidos construíram portos na região, para permitir a exploração de ferro e látex, mas, com a queda dos preços dessas matérias-primas, a economia entrou em decadência e a falácia da democracia da Libéria acabou.
O presidente William Richard Tolbert foi morto em abril de 1980 durante um golpe militar encabeçado pelo sargento (mais tarde general) Samuel Kanyon Doe, que permaneceu no poder depois de realizar eleições consideradas fraudulentas. O governo desse ditador só terminou em 1990, após cruenta guerra civil, quando ele foi executado. 
A situação interna da Libéria continua instável, em estado quase permanente de guerra civil, e os consequentes massacres de opositores e da população civil, como o que ocorreu no final de 1992, “entre as forças de paz da Comunidade dos Estados da África Ocidental e da Frente Patriótica Nacional resultaram em aproximadamente três mil mortos e oito mil feridos”.

HUMANITAS Nº 87 - SETEMBRO DE 2019 – PÁGINA 6

Pessimismo e realidade (Parte 4)
Divina Scarpim colaboradora deste Humanitas é professora e escritora.
Atua em São Paulo/SP

Na página 172 do livro Sapiens lemos que: “Na Europa medieval, um nobre típico ia à igreja pela manhã e ouvia o sacerdote: ‘Riquezas, luxúria e honra são tentações perigosas. É preciso superá-las e seguir os passos de Cristo’.” Voltando para casa, o nobre vestia suas melhores sedas e ia a um banquete no castelo de seu soberano. Lá, o vinho fluía como água, o menestrel entoava canções sobre Lancelot e Guinevere e os convidados compartilhavam piadas sujas e narrativas sangrentas de guerra.
“É preferível morrer a levar uma vida de humilhação. Se alguém questiona sua honra, só o sangue poderá anular o insulto. E o que pode ser melhor do que ver nossos inimigos fugindo e ter suas belas filhas estremecendo a nossos pés?”.
Os senhores de engenho também iam à missa ouvir os mesmos sermões antes de passar no mercado de escravos, antes de mandar chicotear um negro fujão, antes de estuprar uma escrava mais “ajeitadinha”.
E sua esposa, lembrando o sermão de domingo e sentindo o “espírito de deus em seu coração”, ajoelhava-se diante do oratório doméstico e rezava até sentir-se uma santa. Depois caminhava altivamente para a cozinha a fim de verificar como andava a preparação da refeição e, se algo não estivesse a seu gosto, distribuía alguns sopapos, enquanto dizia que negros são mesmo animais ignorantes que só conseguem fazer alguma coisa “debaixo de pancada.”
Faço três refeições ao dia e durante elas nunca penso no fato de que muitas pessoas, incluindo crianças, passam fome. Eu sei e tenho consciência disso, lamento que isso aconteça, mas não faço nada para que isso deixe de acontecer.
No momento das minhas refeições não penso nelas porque – é o que digo a mim mesma – se o fizer vou me sentir mal, porque sei que meu salário de professora não seria suficiente sequer para alimentar as crianças que vi jogadas pelas ruas de Copacabana, e menos ainda para alimentar as pessoas que passam fome ao redor do mundo.
E essa é uma verdade que eu poderia usar para me justificar cada vez que entro em minha casa, compro uma roupa nova, vou a um restaurante, sou atendida por um médico do meu convênio, que viajo nas férias e em muitos outros momentos em que estou usufruindo de algo que é total ou parcialmente interditado a muitas pessoas.
Posso usar essa verdade como justificativa para todos os meus privilégios porque ela é uma verdade, meu salário de professora realmente não é suficiente para que eu possa dar a todas as pessoas do mundo o mesmo tipo de vida minimamente digna que tenho.
Mas se tanta gente não tem sequer o suficiente para levar uma vida minimamente digna, por que aceito morar, trabalhar, me divertir, viver, fazer parte de uma sociedade que permite e tolera que pessoas vivam com fome e morram sem dignidade?
Consigo, porque sou egoísta e má. Porque lamento, mas não faço nada para mudar uma realidade que me incomoda, porque lamento, mas consigo viver, consigo sorrir, consigo ser feliz e até mesmo me sentir grata à minha sorte quase da mesma forma que outras pessoas que fazem exatamente o que faço conseguem agradecer a um deus.
Eu, do alto da minha racionalidade briguenta e teimosa, chego a perceber a contradição dessas pessoas que agradecem pelo que têm a um deus que acreditam ser todo poderoso e esquecem de culpar esse deus por não ter dado a todas as pessoas do mundo essas mesmas razões para agradecer.
Critico as pessoas que aceitam que um deus todo poderoso deixe crianças morrerem de fome, desde que dê a essas pessoas aquilo que têm ou que pedem em oração. Mas quem sou eu para me julgar melhor do que elas?
Outra boa justificativa muito verdadeira que posso usar para minha maldade e meu egoísmo é que, se não agisse dessa forma, se não esquecesse as crianças famintas quando estou diante de uma bela fatia de pizza, se não esquecesse as pessoas doentes e abandonadas quando converso, sorrio e sou feliz com meus entes queridos, se não conseguisse abstrair da minha mente todo o mal que atinge milhões de pessoas eu não conseguiria viver.
É fato, sou um animal humano e meus instintos de animal humano me impõem esse egoísmo, essa propensão a cuidar primeiro de mim mesma e das pessoas que amo e só depois, se me lembrar, se tiver tempo, se sobrar recursos, pensar em fazer alguma coisa por alguém que sofre. Mas sou também o animal que pensa, o animal que raciocina, pondera, cria linguagens, mitos, conceitos e verdades.
E um dos mitos que crio é o de que sou uma pessoa boa e decente porque vivo minha vida sem causar mal a ninguém e procuro ajudar as pessoas sempre que posso. Esse mito camufla o meu egoísmo atávico e a maldade que é minha e que virá à tona se eu permitir ou se for de colocada diante de uma situação na qual meu instinto tiver que gritar mais alto.
No livro 1984, de George Orwell, o personagem Winston tenta lutar contra o sistema, tem conhecimento da opressão em que vive e ama Suzanna, mas quando é torturado por O’Brien chega àquele ponto em que todas as suas resistências são quebradas e, sem mentira, fingimento ou revolta, deseja que toda a dor seja transferida para Suzanna, vê o que O’Brien quer que ele veja e adora o Grande Irmão.
Winston é um animal humano como eu, e muito provavelmente eu também tenho um ponto em que me entregaria totalmente como ele fez e, para mim, isso não mostra apenas minha fraqueza, mostra principalmente meu egoísmo e minha maldade. 
E me desculpe ser assim tão direta, mas penso da mesma forma a respeito de você.

HUMANITAS Nº 87 - SETEMBRO DE 2019 – PÁGINA 7

Antero de Quental: o poeta da renovação

Especial do Humanitas


O líder intelectual do Realismo em Portugal foi o poeta Antero de Quental (1842-1891). Ele dedicou sua vida à reflexão dos grandes problemas filosóficos e sociais de seu tempo e contribuiu para implantar ideias renovadoras.
Nasceu na localidade de Ponta Delgada, na ilha de São Miguel, nos Açores, Portugal, no dia 18 de abril de 1842, e com 16 anos ingressou no curso de Direito na Universidade de Coimbra. O poeta praticou suicídio no dia 11 de setembro de 1891 num banco de jardim em Ponta Delgada.
Na Universidade de Coimbra, Antero se tornou o líder dos acadêmicos, graças à sua marcante personalidade.
Organizou a Sociedade do Raio, que pretendia renovar o país através da literatura e liderou um grupo de estudantes, que repudiava as ideias do Romantismo, criando polêmicas entre a velha e a nova geração de poetas.
No ano de 1865, Antero edita “Odes Modernas”, onde rompe com toda a poesia tradicional portuguesa, banindo o romantismo, o sentimentalismo e a religiosidade lírica. Através de seus poemas nascem as ideias de liberdade e justiça.
As obras foram criticadas pelo poeta romântico Antônio Feliciano de Castilho, que acusou Antero de Quental de exibicionista, e de abordar temas que nada tinham a ver com poesia.
O poeta responde à crítica em uma carta aberta a Castilho, intitulada “Bom senso e bom gosto”, na qual Castilho é acusado de obscurantista.
Aproveita a ocasião e também defende a liberdade de pensamento e a independência dos novos escritores, atacando o academismo e a decadente literatura romântica, pregando a renovação.
Foi a partir dessa discussão entre os dois poetas que nasceu a “Questão Coimbrã”.
Essa polêmica passou a ser o marco divisor entre o Romantismo e o Realismo em Portugal.
Em 1871, Antero de Quental, Eça de Queirós, Oliveira Martins e Ramalho Ortigão, organizaram uma série de "Conferências Democráticas", no Cassino Lisbonense, com o intuito de realizar uma reforma na sociedade portuguesa.
Um dos principais temas desse encontro foi intitulado de “Causas da decadência dos povos peninsulares”.
Quando estava para se realizar a V Conferência, ela foi proibida pelo ministro do reino, e os conferencistas acusados de serem subversivos. Apesar da proibição, o grupo alcança seu objetivo e solidifica as raízes artísticas do Realismo português.

DOIS SONETOS DE ANTERO DE QUENTAL

MAIS LUZ!

Amem a noite os magros crapulosos,
E os que sonham com virgens impossíveis,
E os que se inclinam, mudos e impassíveis
À borda dos abismos silenciosos.

Tu, Lua, com teus raios vaporosos,
Cobre-se, tapa-os e torna-os insensíveis,
Tanto aos vícios cruéis e inextinguíveis,
Como aos longos cuidados dolorosos!

Eu amarei a santa madrugada,
E o meio-dia, em vida refervendo,
E a tarde rumorosa e repousada.

Viva e trabalhe em plena luz: depois,
Seja-me dado ainda ver, morrendo,
O claro Sol, amigo dos heróis!
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INTIMIDADE

Quando, sorrindo, vais passando, e toda
Essa gente te mira cobiçosa,
És bela - e se te não comparo à rosa,
É que a rosa, bem vês, passou de moda.

Anda-me às vezes a cabeça à roda,
Atrás de ti também, flor caprichosa!
Nem pode haver, na multidão ruidosa,
Coisa mais linda, mais absurda e doida.

Mas e na intimidade e no segredo,
Quando tu coras e sorris a medo,
Que me apraz ver-te e que te adoro, flor!

Não te quero nunca tanto (ouve isto)
Como quando por ti, por mim, por Cristo,
Juras - mentindo - que me tens amor.