quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Evaldo Coutinho: filósofo marcado pela morte

Texto de Genésio Linhares – Professor/MS – Recife/PE
publicado no HUMANITAS nº 12 – Julho/2013
  
 Para o filósofo, o mundo inteiro morre quando morremos. Não há nenhuma possibilidade de salvação depois da morte
Caso estivesse vivo, o filósofo Evaldo Bezerra Coutinho (nasceu em 23/07/1911 e morreu em 12/05/2007), faria 102 anos em 23 de julho do ano corrente. Homem simples e de grande modéstia, introspectivo por natureza, de fala mansa e de poucos gestos, porém de uma cultura geral e de uma capacidade intelectual invejáveis.
Essas são algumas das gratas lembranças que guardo deste pensador recifense autêntico, cuja obra filosófica ainda não é muito conhecida e nem seriamente estudada e analisada. Doutor em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito do Recife (UFPE), mas nunca exerceu a função. Sua verdadeira vocação estava na Filosofia e nas Artes, principalmente Literatura, Teatro, Cinema e Arquitetura.
A sua concepção filosófica é bastante complexa e ao mesmo tempo extremamente instigante e provocadora pelo caráter de “solipsista de inclusão”, ou seja, deixou uma densa obra ontológica, denominada de Ordem Fisionômica onde todo o universo exterior a ele como fatos, ambientes externos e internos, convívios com amigos, parentes e desconhecidos do mundo cotidiano ou apenas sabido ou imaginado (produto do seu universo interno) existenciado, vivenciado e presenciado por ele, recebe um tratamento cênico virtualizado de natureza ontológica no interior de seu “eu” subjetivo.
Para ele, a filosofia e a arte literária estavam intrinsecamente relacionadas, pois “se efetivam de pensamento a pensamento, da ideação do escritor à idealidade do leitor. A matéria da literatura é, portanto, estritamente introspectiva, diferente da de outras artes que são testemunhadamente empíricas.” (O Lugar de Todos os lugares. Ed.: Perspectiva, 1976. P. 2). Por ser introspectivo, tal gênero é eleito por Coutinho por melhor traduzir e vincular-se com sua proposta filosófica. Além disso, já que alia pensamento e arte, toda a sua obra é escrita em estilo barroco. Estilo que também, segundo ele, comunga com sua perspectiva intimista de pensar.
Neste sentido, a Ordem Fisionômica é composta de cinco volumes, entretanto, para que o leitor tenha uma compreensão mais precisa de seus propósitos com este trabalho, ele escreveu O Lugar de todos os lugares (SP: Perspectiva, 1976). A primeira obra da Ordem foi: A Visão Existenciadora (SP: Perspectiva, 1978); em seguida, O Convívio Alegórico (SP: Perspectiva, 1979), Ser e Estar em Nós (SP: Perspectiva, 1980), A Subordinação ao Nosso Existir (SP: Perspectiva, 1981) e A Testemunha Participante (SP: Perspectiva, 1983).
Além deste extenso trabalho lançou a A Artisticidade do Ser (SP: Perspectiva, 1987) e duas teorias de filosofia da arte: O Espaço da Arquitetura (1ª edição pela Imprensa Universitária – UFPE, 1970) e A Imagem Autônoma (ensaio de teoria do cinema) teve sua primeira publicação pela Editora Universitária (UFPE) em 1972. Interessante observar que essas teorias foram os seus últimos trabalhos, mas os primeiros a serem publicados pela Universidade Federal de Pernambuco. Infelizmente não conseguiu publicar os outros volumes aqui no Recife. Só depois de alguns anos, a editora Perspectiva, de São Paulo, ficou bastante interessada em lançar todo o seu trabalho, inclusive fazendo uma segunda edição de suas duas teorias.
É estranho para muita gente saber que em Pernambuco e mais precisamente no Recife existam filósofos. Evaldo Coutinho foi um grande pensador entre vários que já existiram como Farias Brito, Tobias Barreto e atualmente o Dr. Nelson Saldanha, todos provenientes da Escola de Pensamento do Recife (em breve falaremos um pouco sobre tão nobre, único no Brasil e inovador movimento surgido dentro da Faculdade de Recife nos fins do século XIX). Esta é mais uma faceta desta cidade. Sempre surpreendendo a muitos.
Voltemos, no entanto, ao pensador Coutinho. Para quem conhece o seu pensamento, sabe que, mesmo com toda a dificuldade de ler e compreender sua obra, há uma coerência interna na arquitetura de suas ideias.
O seu subjetivismo absoluto é radicalmente diferente de todos os outros clássicos e renomados pensadores da História da Filosofia, pois não é excludente dos outros “eus” que existiram e que existem.
Muito pelo contrário, todos estão incluídos e pertencem ao eu evaldiano universal, mas condicionado ao prazo de sua vida. A consciência que ele tinha de si mesmo é marcada pela famosa frase do sofista grego Protágoras “o homem é a medida de todas as coisas”, porém, retificada e ajustada por este pensador recifense ao enunciar: “eu sou a medida de todas as coisas”. Ele retirou a generalidade do pensamento do sofista, dando maior precisão e contingência. Desta forma entende-se a sua consciência demiúrgica perpassada em toda a sua obra.
Em A Artisticidade do Ser ele afirma ser o absoluto de todos os absolutos e complementa, declarando que ele diz isso, dele para ele mesmo; como cada um de nós também pode enunciar a mesma idéia. Outro aspecto importante em Evaldo, e não poderia ser diferente, a sua concepção filosófica e estética é humanística sem remeter ao transcendente. O ser, para ele, é uma transgressão ao não-ser. E tal transgressão é efêmera, pois todos nós estamos fadados a brevidade da existência, retornando assim, ao não-ser. Chegando aqui, tudo se acaba. O mundo inteiro morre quando morremos. Não há nenhuma possibilidade de salvação depois da morte. É uma postura extremamente trágica e realística, dura demais para ser assumida, talvez pessimista para muitos. No entanto, esse niilismo trágico foi defendido por Coutinho não apenas no plano teórico, viveu toda a sua vida e morreu convicto desta certeza indubitável.
Outra característica singular neste pensador é a criação de vários neologismos em nosso vernáculo de rica significação filosófica para poder expressar de modo mais exato conteúdos de sua visão cosmológica do ser. Como exemplo, o verbo existenciar com sentido muito próprio de um contemplador de todos os seres existentes e sem relação com a corrente filosófica européia do existencialismo. Outro termo muito interessante é artisticidade, uma qualidade empregada para enfatizar o caráter criativo e criador do ser. O Dr. Evaldo Coutinho tinha profundos conhecimentos da nossa língua e também do latim. Os neologismos inventados com conhecimento de causa enriqueceram ainda mais o nosso vocabulário. 
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Frases de Evaldo Coutinho 
“O universo é produto da nossa imaginação; o universo tem a idade de cada um de nós”.
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“A morte de um indivíduo é uma hecatombe universal. Quando ele morre leva consigo tudo que ele teve na vida”.

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