sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Aborto, sociedade, "Lei do Nascituro" e hipocrisia

Texto de Antônio Carlos Gomes – Médico – Guarujá/SP
publicado no HUMANITAS nº 16 – Novembro/2013

A Lei do Nascituro, por pressão religiosa, dá ao feto todos os direitos, o que fatalmente se chocará com a liberdade da mulher
A Sra. M., uma mulher de 35 anos, bonita, viúva e mãe de duas adolescentes me procurou. O ano era 1976. Apresentava agitação e angústia. Estava grávida. Na época, ainda se exigia a virgindade para casar, e ela, como viúva e com filhas adolescentes, estava em desespero. Tinha de fazer um aborto sem que ninguém soubesse para proteger o núcleo familiar, sob sua responsabilidade. O motivo da consulta não era de uma orientação médica, mas para saber se eu poderia informá-la onde poderia interromper a gravidez. Como médico eu não podia dizer. Na sociedade, tanto a mulher que parte para esse procedimento, quanto o profissional que o realiza ficam malvistos no meio médico e social.
Diante das circunstâncias da época, acreditei serem justas as reivindicações, e mesmo não conseguindo ajudá-la fiquei com o tema martelando na cabeça, na dúvida entre o que me foi passado como profissional e como era a vida fora dos ensinamentos acadêmicos. Nunca mais tive contato com a paciente. Possivelmente ela conseguiu seu intento em alguma clínica clandestina.
Atualmente, o aborto continua em discussão. Permanece proibido por lei com penas de prisão, inclusive da mulher que aborta. É realizado clandestinamente, ora em algumas clínicas particulares, ora em mãos de aborteiras sem preparo, com métodos arcaicos e de alto risco para a mulher, ou, ainda em desespero, dentro da própria casa com introdução de agulhas de tricô no útero ou com a ingestão de comprimidos abortivos.
A idade da mulher que aborta, atualmente, fica entre os 20 e 25 anos. Geralmente tem dificuldades econômicas, e sofre o abandono por parte do parceiro, ou seja, vive uma situação social vulnerável, transformando o aborto num grave problema social muito mais do que um ato de anticoncepção. Poucas mulheres fariam o aborto se as condições fossem diferentes. Elas são socioculturalmente contra. O que as leva a esse ato extremo, incompatível com seus princípios, é semelhante ao da senhora M.: um ato de proteção à família, na maioria das vezes.
A maior pressão contra o aborto no Brasil e no resto do mundo é exercida por grupos religiosos, sob a alegação de que o feto tem vida a partir da fecundação.
Interessante notar que, exceto o espiritismo, que fala claramente contra o aborto em um de seus livros, a maior parte das alegações contrárias vem dos pregadores cristãos. Ao mesmo tempo em que o pastor efetua um trabalho de ressocialização em presídios, exclui da comunidade a mulher que aborta.
Olhando-se do ponto de vista sociológico, o pastor, diante dessa transgressão, dada por sua exclusiva interpretação, não pode atribuir a falha aos escritos bíblicos, pois lá ela não se encontra escrita. Ele tem as opções de atribuir a falha a si mesmo, correndo o risco de ficar desacreditado na comunidade ou atribuir a falha a todo o grupo religioso por ignorar o abandono em que a mulher se encontrava, isto é, penúria material e psicológica e, lidar com uma agitação interna de toda a comunidade que tentará se eximir da culpa, o que faz esta via ser de difícil manejo.
Assim, a opção segue outro rumo: põe a culpa na mulher fragilizada, numa ação hipócrita, responsabilizando-a pelos antecedentes que causaram a angústia do momento e a proíbe de praticar o aborto (caso não o tenha feito), sem apresentar outra solução. Em contrapartida se este já estiver consumado a mulher é praticamente expulsa do meio religioso. Este é um perverso somatório de culpas, com efeitos graves na vida da mulher: perde o possível filho e também a graça de um deus em que ela acredita.
O grupo principal para uma liberalização do aborto é formado pelos profissionais da área da saúde, médicos, enfermeiras e auxiliares de enfermagem, assistentes sociais e psicólogos. A formação social da maioria desses profissionais (geralmente da classe mais abastada) é contra o aborto e tem repulsa por ele. Há inúmeros relatos de paciente chegando ao serviço com sangramento e feto em expulsão, que fica isolada, com tempo de espera pelo socorro acima do necessário, sem nenhum diálogo com o pessoal responsável pelo atendimento.
Em alguns casos descritos na literatura, a curetagem é feita sem anestésicos, altamente dolorosa, no intuito claro de “castigar a criminosa”. A repulsa é real e vem da formação acadêmica.  Nas clínicas que fazem aborto, o sigilo é exigência, tanto do ponto de vista jurídico, como do profissional, pois todo aborteiro é isolado da comunidade médica.
Temos ainda o ponto de vista jurídico. A mulher que aborta, sendo denunciada, é criminosa e responderá a processo. Atualmente, está em trâmites de aprovação a Lei do Nascituro. Essa lei, por pressão religiosa, dá ao feto todos os direitos, o que fatalmente se chocará com a liberdade da mulher, quando ela é que deve ser dona do próprio corpo.
Este embrião, este ser é ainda uma possibilidade de vida e, cientificamente, um corpo estranho na mulher. Se essa lei for aprovada não poderá ser tocado, transformando a mulher, como na Idade Média, em alguém que recebe os espermatozoides para formar uma criança, mas sem direitos sobre o feto.
Os juízes têm a mesma formação social dos médicos e a tendência em um caso de aborto será a de culpar a mulher. Como dá para notar, a sobrecarga vai se tornar insuportável. A única solução plausível é considerar a mulher que aborta vítima das circunstâncias, sem criminalizá-la e enterrar essa absurda Lei do Nascituro.
O problema do aborto não é só a liberação em um decreto, mas um problema sociocultural complexo, que só diminuirá aprofundando-se estudos e união de, no mínimo, pessoal da saúde e do governo. O que não podemos admitir é que se relegue a mulher ao abandono, à morte e a mutilações. A propriedade do próprio corpo, conseguida depois de muitas lutas feministas não pode ser revogada.
Hoje, o número de abortos no Brasil é estimado em um milhão por ano, com 250 mil complicações, conforme o DATASUS. Ainda mais alarmante: um óbito a cada dois dias, o que o classifica como um problema de saúde pública a ser resolvido com urgência.
A sociedade tem de se interessar pelo tema e não ser apenas a favor ou contra. Mas procurar meios de preservar a vida e a integridade psicológica da mulher, sem torná-la culpada por uma falha social que existe muito antes dela nascer.

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