quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

A saudade que o dicionário não registra

Texto de Luciano Siqueira - Médico – Vice-prefeito do Recife 
publicado no HUMANITAS nº 13 – Agosto/2013

Passam-se os anos e a gente entra naquela faixa etária em que reminiscências ganham importância, disputando espaço com sensações e vivências presentes. “Você não tem saudades da infância?”, costumam perguntar. “Bons tempos aqueles das matinês no Cine São Luiz”, comentou outro dia um conterrâneo norte-rio-grandense que, como eu, teve parte da adolescência vivida em Natal.
Numa das comemorações quinquenais da turma de 1972 do curso médico da UFPE, vários colegas se referiram, emocionados, aos primeiros anos de Faculdade. Discursando em seguida, como homenageado, o professor de gastroenterologia Djalma Vasconcelos, então com mais setenta e ainda frequentando o consultório, disse estranhar tanto chororô por tempos vividos tão recentemente, já que ele não tinha tempo de se deter no passado tamanho o entusiasmo com o presente e com seus planos para o futuro.
O professor Djalma tinha razão. Mas, de toda sorte a saudade existe – e tem muita saudade boa de sentir. “Das lembranças/Que eu trago na vida/Você é a saudade/Que eu gosto de ter”, diz a canção.
Ora, se não há felicidade sem dor é preciso reconhecer que também as más lembranças de experiências, gestos, palavras e perdas que é melhor deixar pra trás. O leite já foi derramado faz tempo.
Bom, se tem saudade boa, natural que no verbete correspondente a esse sentimento seja mencionada. Ocorre que, consultando o Houaiss (tido hoje como mais completo do que o Aurélio), verifico que “saudade” quer dizer “sentimento mais ou menos melancólico de incompletude, ligado pela memória a situações de privação da presença de alguém ou de algo, de afastamento de um lugar ou de uma coisa, ou à ausência de certas experiências e determinados prazeres já vividos e considerados pela pessoa em causa como um bem desejável.” 
Se bem entendi, “saudade” no Houaiss é sinônimo de coisa negativa. E a saudade gostosa de sentir pelo que significou de bom ou pelo desejo de reviver?
Parece que entre o dicionarista e o poeta há divergências abissais na devida consideração desse precioso sentimento humano. Com todo o respeito, fico com o poeta – pois perto de mais um aniversário, posso garantir: tenho muita saudade boa de sentir, e já me esqueci das más, embora prefira – como nosso inesquecível professor de gastro – viver intensamente o presente.

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