sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Realidade versus arte

Texto de Genésio Linhares – Professor/MS – Recife/PE
Publicado no HUMANITAS nº 18 – Janeiro/2014

Temos consciência que neste mundo nunca houve e nem haverá sociedade civilizatória perfeita e plenamente ética


Por mais que o ser humano declare querer a verdade e viver na realidade, ele não consegue perdurar apenas nessas dimensões. Ele termina escapando para o fingimento, para os subterfúgios, pois a dureza e intensidade destes aspectos o impedem, de certa forma, de enfrentá-la para si mesmo e para a sua convivência social. É óbvio que existem as exceções, mas o preço que se paga é o isolamento, a distância dos outros, a marginalização e a indiferença. Por outro lado, não estamos aqui, a defender, o mascaramento, o fingir e a hipocrisia. É um fenômeno humano presente em todas as sociedades. Em umas muito mais do que em outras. Porém, é uma constatação indubitável.
Sendo assim, o ser humano em geral, sem exceção, encontra no mundo da arte uma forma de terapia e salvação, deveras eficaz ante o paradoxo que angustia, incomoda, muitas vezes é trágica e quando não, adoece corpo e mente. Para quem é produtor e criador da arte é a realização e o externar-se de seu ser e de sua concepção de mundo. Mesmo que seja um realizar-se sempre incompleto, desejoso de criar sempre mais e mais. Importando em maior grau a sensibilidade estética a ser transmitida do que mesmo as preocupações com a verdade e lições de moral. Apesar de que, quando o artista desmascara certas hipocrisias, termina como sempre, chocando os seus admiradores.
Aos que apenas a contemplam há uma necessidade de estar constantemente buscando novas obras de arte. E por que não conseguimos viver sem ela? Por que ela fascina a todos, sem exceção? Provavelmente pelos mesmos motivos. A arte é terapêutica e salvífica de modo universal, seja para o criador, seja para quem apenas a contempla. O próprio Aristóteles reconheceu, na obra “Arte Poética”, o efeito catártico do poético.
Em outros termos, a arte purifica, alivia, salva o seu fruidor da dureza e crueza da realidade, da vida com seus árduos conflitos e dramas, tragédias, imediatez e mediocridade imperante, trazendo um pouco de leveza ao nosso ser. Uma vez que no mundo da ficção as facetas humanas, da racionalidade aos instintos mais selvagens, estão no nível da representatividade. Sabemos que, em muitos casos, a ficção transforma-se em realidade. Quando isto ocorre, a dor, o sofrimento individual e coletivo é incomensurável. Sentimo-nos inferiores, frágeis, em muitos casos bárbaros, pois nos deparamos com a face feroz e animal que há em nós. Este lado obscuro é deplorável, desprezível, mas está em nós.
Estamos constantemente nos debatendo contra ações dessa natureza. No entanto, por que atos antiéticos de violência, de injustiças, de desvios de verbas públicas e corrupções, de atitudes anti-humanas acontecem com tanta frequência no dia a dia em diversas sociedades? Em países onde o estado faz cumprir suas leis, tais feitos ocorrem, porém, a punição é efetiva. Não significando que a natureza humana tornou-se melhor.
A presença do estado ainda é necessária para coibir atrocidades, ganâncias e egoísmos desenfreados e desumanos como diria o filósofo inglês Thomas Hobbes.
Agora, investir na boa educação e formação elevada, na cultura autóctone e na arte dos cidadãos são caminhos para que os próprios passem a ter maior controle desses aspectos negativos. Temos consciência que neste mundo nunca houve e nem haverá sociedade civilizatória perfeita e plenamente ética, entretanto, as lições do velho Platão na sua República” ainda encontram ressonância e validade para nós quando afirma categoricamente que o bem e o belo, no ápice do mundo ideal, devem ser paradigmas e modelos de referências fundamentais a serem permanentemente perseguidos aqui, em nosso mundo.
Entretanto, tal mundo encontra-se perdido nas ilusões dos espetáculos de massa, nas aparências e vazias ideologias sem os referenciais enfatizados por Platão, e que eram valores buscados pelo povo grego antigo como um todo. Raros buscam a verdade, os valores éticos, a beleza e a sua própria liberdade para serem aplicadas e vivenciadas em nossa realidade. Por outro lado, existir é conviver com os paradoxos e estar entre o sonho e a tragicidade da realidade.
Mesmo que os céticos neguem os valores da arte e de seu poder representativo e simbólico. Os piores tiranos da história, por mais irônico e insanos que possam parecer, demonstram uma sensibilidade com algum tipo de arte. O imperador Nero, num acesso de loucura e genocídio, mandou incendiar Roma para encontrar a chama inspiradora para criar uma canção. Hitler tinha uma verdadeira paixão por obras de arte, inclusive, antes de se tornar o ditador germânico, tentou ser pintor.
A arte é uma dimensão inerente ao ser humano, pois é um criador eternamente inquieto e insatisfeito. O mundo dado como está aí é matéria para ele transformar em seu universo fictício, assim como o campo das possibilidades é fonte deste poder criador. O pensador Evaldo Coutinho em sua sugestiva obra “A Artisticidade do Ser” demonstra claramente que a criatividade artística é algo pertinente ao ser.
É o caráter demiúrgico e filosófico do ser. Na perspectiva filosófica e singular de Coutinho “...o conhecimento do Ser e a sua artisticidade são a mesma coisa, parecendo que a conversão da possibilidade e da realidade em conteúdos de meu repertório, se opera mediante uma triagem na qual o gosto pela harmonia em direção à unidade, firma a elaboração da obra.” (1987,p. 170)
O mundo e o campo das possibilidades e da ficção são matérias transformadas criativamente e com sentidos evaldianos muito próprios no âmago de sua subjetividade inclusiva, uma vez que ele existência todo o universo em seu interior.
Sobre a sua dimensão demiúrgica declara ele no parágrafo anterior: “Ao pesar a conjuntura da existencialidade em mim, não posso sentir-me como se fora o deus anteriormente à criação do mundo, mas posso assumir-lhe o papel enquanto sou o demiurgo de meus existenciamentos desde que nada fui antes de ver-me a existenciar.” Todo o existir evaldiano, tudo o que ele observa do mundo externo e do seu imaginário passam a ter um aspecto profundamente filosófico e artístico em dimensões absolutas até o prazo de seu perecimento.
Enfim, por mais que queiramos ser realistas, ter “pés no chão” como se afirma popularmente, é inevitável a sede e a fome de termos uma visão mais ampla, mais filosófica, mais criativa, artisticamente falando, do mundo. Não nos contentamos com visões alienantes, uniformizadoras e massificadoras impostas por ideologias e sistemas. Queremos ir além das aparências superficiais e dar vazão ao nosso próprio modo de ver panorâmico e cosmológico do mundo. Para tal é necessário o exercício constante da criatividade artística e demiurga que há em nós, mesmo convivendo cotidianamente com todas as contradições, conflitos, tragédias e paradoxos que a realidade nos impõe e tenta manter os seus grilhões no mundo material e mental. Afinal, não nascemos para sermos escravos. Nascemos para conquistar e construir a nossa liberdade. Se no campo político, social e econômico ainda está longe de a efetivarmos, no campo da arte e do pensar filosófico, esta efetivação depende exclusivamente de nós.

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