sábado, 22 de fevereiro de 2014

Desmilitarização da PM impõe-se desde 1985

Texto de Celso Lungaretti – Jornalista – São Paulo/SP
Publicado no HUMANITAS nº 19 – Fevereiro/2014
 
A ditadura estimulou a absorção da civilizada Guarda Civil de São Paulo
pela truculenta Força Pública, sob a denominação de Polícia Militar
No instante em que é novamente discutida a substituição das polícias militarizadas brasileiras por instituições civis, vale lembrarmos que, no final de junho de 2012, o Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas recomendou a extinção das ditas cujas, em função não só de seu altíssimo índice de letalidade, mas também do fato de que parte expressiva de tais óbitos se devia a "execuções extrajudiciais".
Após analisar 11 mil casos de alegadas  resistências seguidas de morte”, a ONU constatou o que por aqui todos estávamos carecas de saber desde 1992, quando Caco Barcellos lançou seu primoroso livro-reportagem “Rota 66 – A História da Polícia que Mata”: frequentemente não houvera resistência nenhuma, mas tão somente, assassinatos a sangue frio de suspeitos já rendidos. Para piorar, as autoridades quase sempre acobertavam os homicídios desnecessários e covardes perpetrados pelos PMs.
Na reunião da ONU em que se discutiu o assunto, coube à Coreia do Sul dar nome aos bois, equiparando tais episódios aos crimes outrora cometidos pelos nefandos esquadrões da morte” (aqueles bandos de policiais exterminadores que, durante a ditadura militar, trombeteavam triunfalmente seus feitos e agora atuam com alguma discrição, mas continuam existindo, sim, senhor!).
Para Marcelo Freixo, professor de História e deputado estadual pelo PSOL (RJ), "é fundamental que o Congresso Nacional aprove a proposta de emenda constitucional (PEC 51/2013) que prevê a desvinculação entre a polícia e as Forças Armadas; a efetivação da carreira única, com a integração entre delegados, agentes, polícia ostensiva, preventiva e investigativa; e a criação de um projeto único de polícia". Concordo em gênero, número e grau. 
Freixo citou vários episódios em que o treinamento imposto pela PM, rigoroso a ponto de justificar a comparação com sessões de tortura, causou a morte de soldados. O caso mais chocante aconteceu no Rio de Janeiro, em novembro, quando um integrante da 5ª Companhia Alfa da PM morreu, outros 33 recrutas passaram mal e 24 sofreram queimaduras nas mãos ou nas nádegas (quem não suportava os exercícios era obrigado a sentar-se no asfalto escaldante).
Os oficiais não lhes davam sequer tempo para se hidratarem, então alguns beberam a água suja destinada aos cavalos. A enfermaria da unidade revelou que alunos chegaram a urinar e vomitar sangue. O secretário estadual de Segurança José Mariano Beltrame, classificou a morte do recruta Paulo Aparecido Santos de Lima, 27 anos, como homicídio. Resta saber se será punida como tal. Uma pertinente indagação de Freixo: “Como esses soldados, submetidos a um treinamento cruel e humilhante, se comportarão quando estiverem patrulhando as ruas e atuando na pacificação das comunidades?" 
E uma constatação também pertinente (eu diria até irrefutável...): "Em todos os Estados do país, a PM é concebida sob a mesma lógica militarista e antidemocrática. (...) Em vez de se preocupar em formar soldados para a guerra, para o enfrentamento e a manutenção da ordem de forma truculenta, o Estado precisa garantir que esses profissionais atuem de forma a fortalecer a democracia e os direitos civis. A realização dessa missão passa necessariamente por mudanças na essência do braço repressor do poder público". 
Tal mostrengo existe por obra e graça da ditadura de 1964/85. Na sua trajetória para concentrar poder na segunda metade da década de 1960, os militares encontraram alguma resistência por parte dos governadores civis que ajudaram a dar o golpe, mas depois viram, com óbvio desagrado, esfumarem-se suas ambições presidenciais. Precavidos, os fardados resolveram assegurar-se de que os paisanos não contariam com tropas leais.
O governador de São Paulo, Adhemar de Barros, até o último momento acreditou que a Força Pública impediria a cassação do seu mandato (tiraram-no do caminho acusando-o de corrupto - o que ele sempre foi - mas, na verdade, porque não se conformava com o monopólio castrense do poder).
Então, nas Constituições impostas de 1967 e 1969, a ditadura fez constar da forma mais incisiva que "as polícias militares (...) e os corpos de bombeiros militares são considerados forças auxiliares, reservas do Exército". 
Na prática, seus comandos foram se subordinando cada vez mais aos das Forças Armadas; e as lições de tortura aprendidas de instrutores estadunidenses e aprimoradas nos DOI-CODIs da vida foram ciosamente repassadas aos novos “pupilos”. 
Daí a tortura ter continuado a grassar solta, longe dos holofotes, depois da redemocratização do País, só mudando o perfil das vítimas (passaram a ser os presos comuns). Além disto, a ditadura estimulou a absorção da civilizada Guarda Civil de São Paulo pela truculenta Força Pública (que atuava como tropa de choque em conflitos), sob a denominação de Polícia Militar.
Vale notar que o decreto-lei neste sentido, o de nº 217, é de 08/04/1970, bem no auge do terrorismo de estado no Brasil. 
Não é à toa que, até 2011, a unidade mais violenta da PM paulista (a Rota) mantinha no seu site rasgados elogios ao papel que a corporação havia desempenhado na derrubada do presidente legítimo João Goulart, só deletando esses elogios após ordem da ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário.

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