Texto de Celso Lungaretti – Jornalista – São
Paulo/SP
Publicado no HUMANITAS nº 19 – Fevereiro/2014
A ditadura estimulou a absorção da civilizada
Guarda Civil de São Paulo
pela truculenta Força Pública, sob a denominação
de Polícia Militar
No instante em que é novamente discutida a substituição das polícias
militarizadas brasileiras por instituições civis, vale lembrarmos que, no final
de junho de 2012, o Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas
recomendou a extinção das ditas cujas, em função não só de seu altíssimo índice
de letalidade, mas também do fato de que parte expressiva de tais óbitos se
devia a "execuções extrajudiciais".
Após analisar 11 mil casos de alegadas “resistências seguidas de morte”, a ONU constatou o que por aqui todos estávamos carecas de saber desde 1992, quando Caco Barcellos lançou seu primoroso livro-reportagem “Rota 66 – A História da Polícia que Mata”: frequentemente não houvera resistência nenhuma, mas tão somente, assassinatos a sangue frio de suspeitos já rendidos. Para piorar, as autoridades quase sempre acobertavam os homicídios desnecessários e covardes perpetrados pelos PMs.
Na reunião da ONU em que se discutiu o assunto, coube à Coreia do Sul dar nome aos bois, equiparando tais episódios aos crimes outrora cometidos pelos nefandos “esquadrões da morte” (aqueles bandos de policiais exterminadores que, durante a ditadura militar, trombeteavam triunfalmente seus feitos e agora atuam com alguma discrição, mas continuam existindo, sim, senhor!).
Para Marcelo Freixo, professor de História e deputado estadual pelo PSOL (RJ), "é fundamental que o Congresso Nacional aprove a proposta de emenda constitucional (PEC 51/2013) que prevê a desvinculação entre a polícia e as Forças Armadas; a efetivação da carreira única, com a integração entre delegados, agentes, polícia ostensiva, preventiva e investigativa; e a criação de um projeto único de polícia". Concordo em gênero, número e grau.
Freixo citou vários episódios em que o treinamento imposto pela PM, rigoroso a ponto de justificar a comparação com sessões de tortura, causou a morte de soldados. O caso mais chocante aconteceu no Rio de Janeiro, em novembro, quando um integrante da 5ª Companhia Alfa da PM morreu, outros 33 recrutas passaram mal e 24 sofreram queimaduras nas mãos ou nas nádegas (quem não suportava os exercícios era obrigado a sentar-se no asfalto escaldante).
Os oficiais não lhes davam sequer tempo para se hidratarem, então alguns beberam a água suja destinada aos cavalos. A enfermaria da unidade revelou que alunos chegaram a urinar e vomitar sangue. O secretário estadual de Segurança José Mariano Beltrame, classificou a morte do recruta Paulo Aparecido Santos de Lima, 27 anos, como homicídio. Resta saber se será punida como tal. Uma pertinente indagação de Freixo: “Como esses soldados, submetidos a um treinamento cruel e humilhante, se comportarão quando estiverem patrulhando as ruas e atuando na pacificação das comunidades?"
E uma constatação também pertinente (eu diria até irrefutável...): "Em todos os Estados do país, a PM é concebida sob a mesma lógica militarista e antidemocrática. (...) Em vez de se preocupar em formar soldados para a guerra, para o enfrentamento e a manutenção da ordem de forma truculenta, o Estado precisa garantir que esses profissionais atuem de forma a fortalecer a democracia e os direitos civis. A realização dessa missão passa necessariamente por mudanças na essência do braço repressor do poder público".
Tal mostrengo existe por obra e graça da ditadura de 1964/85. Na sua trajetória para concentrar poder na segunda metade da década de 1960, os militares encontraram alguma resistência por parte dos governadores civis que ajudaram a dar o golpe, mas depois viram, com óbvio desagrado, esfumarem-se suas ambições presidenciais. Precavidos, os fardados resolveram assegurar-se de que os paisanos não contariam com tropas leais.
O governador de São Paulo, Adhemar de Barros, até o último momento acreditou que a Força Pública impediria a cassação do seu mandato (tiraram-no do caminho acusando-o de corrupto - o que ele sempre foi - mas, na verdade, porque não se conformava com o monopólio castrense do poder).
Então, nas Constituições impostas de 1967 e 1969, a ditadura fez constar da forma mais incisiva que "as polícias militares (...) e os corpos de bombeiros militares são considerados forças auxiliares, reservas do Exército".
Na prática, seus comandos foram se subordinando cada vez mais aos das Forças Armadas; e as lições de tortura aprendidas de instrutores estadunidenses e aprimoradas nos DOI-CODIs da vida foram ciosamente repassadas aos novos “pupilos”.
Daí a tortura ter continuado a grassar solta, longe dos holofotes, depois da redemocratização do País, só mudando o perfil das vítimas (passaram a ser os presos comuns). Além disto, a ditadura estimulou a absorção da civilizada Guarda Civil de São Paulo pela truculenta Força Pública (que atuava como tropa de choque em conflitos), sob a denominação de Polícia Militar.
Vale notar que o decreto-lei neste sentido, o de nº 217, é de 08/04/1970, bem no auge do terrorismo de estado no Brasil.
Não é à toa que, até 2011, a unidade mais violenta da PM paulista (a Rota) mantinha no seu site rasgados elogios ao papel que a corporação havia desempenhado na derrubada do presidente legítimo João Goulart, só deletando esses elogios após ordem da ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário.
Após analisar 11 mil casos de alegadas “resistências seguidas de morte”, a ONU constatou o que por aqui todos estávamos carecas de saber desde 1992, quando Caco Barcellos lançou seu primoroso livro-reportagem “Rota 66 – A História da Polícia que Mata”: frequentemente não houvera resistência nenhuma, mas tão somente, assassinatos a sangue frio de suspeitos já rendidos. Para piorar, as autoridades quase sempre acobertavam os homicídios desnecessários e covardes perpetrados pelos PMs.
Na reunião da ONU em que se discutiu o assunto, coube à Coreia do Sul dar nome aos bois, equiparando tais episódios aos crimes outrora cometidos pelos nefandos “esquadrões da morte” (aqueles bandos de policiais exterminadores que, durante a ditadura militar, trombeteavam triunfalmente seus feitos e agora atuam com alguma discrição, mas continuam existindo, sim, senhor!).
Para Marcelo Freixo, professor de História e deputado estadual pelo PSOL (RJ), "é fundamental que o Congresso Nacional aprove a proposta de emenda constitucional (PEC 51/2013) que prevê a desvinculação entre a polícia e as Forças Armadas; a efetivação da carreira única, com a integração entre delegados, agentes, polícia ostensiva, preventiva e investigativa; e a criação de um projeto único de polícia". Concordo em gênero, número e grau.
Freixo citou vários episódios em que o treinamento imposto pela PM, rigoroso a ponto de justificar a comparação com sessões de tortura, causou a morte de soldados. O caso mais chocante aconteceu no Rio de Janeiro, em novembro, quando um integrante da 5ª Companhia Alfa da PM morreu, outros 33 recrutas passaram mal e 24 sofreram queimaduras nas mãos ou nas nádegas (quem não suportava os exercícios era obrigado a sentar-se no asfalto escaldante).
Os oficiais não lhes davam sequer tempo para se hidratarem, então alguns beberam a água suja destinada aos cavalos. A enfermaria da unidade revelou que alunos chegaram a urinar e vomitar sangue. O secretário estadual de Segurança José Mariano Beltrame, classificou a morte do recruta Paulo Aparecido Santos de Lima, 27 anos, como homicídio. Resta saber se será punida como tal. Uma pertinente indagação de Freixo: “Como esses soldados, submetidos a um treinamento cruel e humilhante, se comportarão quando estiverem patrulhando as ruas e atuando na pacificação das comunidades?"
E uma constatação também pertinente (eu diria até irrefutável...): "Em todos os Estados do país, a PM é concebida sob a mesma lógica militarista e antidemocrática. (...) Em vez de se preocupar em formar soldados para a guerra, para o enfrentamento e a manutenção da ordem de forma truculenta, o Estado precisa garantir que esses profissionais atuem de forma a fortalecer a democracia e os direitos civis. A realização dessa missão passa necessariamente por mudanças na essência do braço repressor do poder público".
Tal mostrengo existe por obra e graça da ditadura de 1964/85. Na sua trajetória para concentrar poder na segunda metade da década de 1960, os militares encontraram alguma resistência por parte dos governadores civis que ajudaram a dar o golpe, mas depois viram, com óbvio desagrado, esfumarem-se suas ambições presidenciais. Precavidos, os fardados resolveram assegurar-se de que os paisanos não contariam com tropas leais.
O governador de São Paulo, Adhemar de Barros, até o último momento acreditou que a Força Pública impediria a cassação do seu mandato (tiraram-no do caminho acusando-o de corrupto - o que ele sempre foi - mas, na verdade, porque não se conformava com o monopólio castrense do poder).
Então, nas Constituições impostas de 1967 e 1969, a ditadura fez constar da forma mais incisiva que "as polícias militares (...) e os corpos de bombeiros militares são considerados forças auxiliares, reservas do Exército".
Na prática, seus comandos foram se subordinando cada vez mais aos das Forças Armadas; e as lições de tortura aprendidas de instrutores estadunidenses e aprimoradas nos DOI-CODIs da vida foram ciosamente repassadas aos novos “pupilos”.
Daí a tortura ter continuado a grassar solta, longe dos holofotes, depois da redemocratização do País, só mudando o perfil das vítimas (passaram a ser os presos comuns). Além disto, a ditadura estimulou a absorção da civilizada Guarda Civil de São Paulo pela truculenta Força Pública (que atuava como tropa de choque em conflitos), sob a denominação de Polícia Militar.
Vale notar que o decreto-lei neste sentido, o de nº 217, é de 08/04/1970, bem no auge do terrorismo de estado no Brasil.
Não é à toa que, até 2011, a unidade mais violenta da PM paulista (a Rota) mantinha no seu site rasgados elogios ao papel que a corporação havia desempenhado na derrubada do presidente legítimo João Goulart, só deletando esses elogios após ordem da ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário.
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