Conto
de Rafael Rocha – Jornalista – Recife/PE
publicado no jornal HUMANITAS –
janeiro/2013
Uma casa (?) de madeira caindo aos pedaços em alguma das margens do rio
Capibaribe. Numa das margens? Coisa de grande monta escrever assim. Talvez
alguma área de lama em algum braço morto do rio. Um pedaço de mangue ainda não
aterrado em nome do progresso.
E, sobre o progresso, nestes espaços, para que falar? O mau cheiro das
águas parecia vasculhar o perfil do casebre e dos outros casebres alinhados em
torno. Qualquer olhar a se nortear pelo espaço afora, conseguiria ver ao longe
os grandes edifícios quase envoltos pela penumbra do entardecer.
Um bulício de gente. Ordens. Militares fardados. Mulheres. Umas em
prantos. Outras falando coisas por falar. Homens maltrapilhos, descalços.
Crianças de barrigas inchadas, nuas, magras. Na realidade, tudo em olhos de
espanto. Olhos de comiseração. Olhos de fome e, por que não dizer, olhos de
miséria e desconfiança? Policiais militares. Policiais civis. Homens de branco
saindo do casebre. Um corpo envolto num lençol sujo. Um rosto de menina. Olhos
arregalados injetados de sangue.
E sangue. Tudo sangue nessa periferia cidadã. E o rio sujo. O braço
morto do rio apresentando o trágico: a vida zumbi de homens e mulheres e
meninos e meninas. Contraste com os homens fardados, os homens de branco,
Contraste com o fumo hollywood, carlton em mistura com o fumo barato e às
cachimbadas dos velhos mais distantes, acocorados, catando coisas invisíveis na
lama marginal.
E aos olhos de Inácio, o corpo ensanguentado de Diná envolto no lençol
sujo. Os cabelos de Diná: as tranças caídas e se balançando ao vento. E aos
olhos de Inácio, as imagens do homem: nu e bestificado em cima do corpo da
irmã, subindo e descendo, subindo e descendo, fazendo o sangue escorrer no chão
de lama. Subindo e descendo, sem ligar aos gritos, sem ligar aos movimentos
ásperos de fuga do pequeno corpo de treze anos.
E, aos olhos de Inácio, o olhar do homem. A faca nas mãos, gestos
rápidos de fuga, vestindo-se, ameaçando-o, batendo-lhe no rosto com a palma da
mão direita, suada, sangrando de alguma mordida da Diná. Diná se escondendo
como um pequeno animal assustado. Um cãozinho que houvesse sofrido uma grande
surra e, depois, o grito, o pulo sobre o homem, a mordida na garganta e Inácio
vendo a faca subindo e descendo, subindo e descendo, subindo e descendo e o
corpo da menina no mole, mole, caindo sobre a lama.
Que fazer com o garoto? Levá-lo. Para onde? Nada de perguntas idiotas!
O menino não tem ninguém por ele. É órfão. É de menor idade. Para a Fundação? Não.
Juizado primeiro. Vamos ver se ele nos diz alguma coisa.
Dizer o quê? Não conhecia o homem. Se era dali do meio deles? Não.
Nunca o tinha visto. Você está mentindo garoto. Não, não senhor, nunca vi ele.
Primeira vez hoje. Nunca o vi. Nunca vi ele.
Você vai para a escola, falou a mulher toda cheirosa de perfume. Você
vai aprender a ler, escrever, trabalhar. Vai ser um homem. Vai esquecer tudo
isso. Aprenderá tudo na escola.
A escola? Que seria aquela escola para os seus onze anos? Muitos
meninos. Meninos maus. Meninos tristes. O Carola, que fumava cigarros cheirosos
encarrapitado no imenso pé de jaca?
O Bonifácio, que metera um canivete nas nádegas do vigilante? O Enildo,
que dormia na cama de todo mundo e tinha jeito de menina? O Espiridião, muito
alto, negro como carvão e de quem todos tinham medo e diziam que já
“despachara” dois caras da polícia lá pelas bandas do bairro dos Afogados?
A escola? Ele não podia esquecer a escola. A mulher cheirosa de perfume
ele lembrava pouco. Só a vira uma vez. Mas a escola ensinara muita coisa.
Ensinara a andar macio como um gato. Ensinara a fumar aqueles cigarros
cheirosos. Ensinara a usar um canivete. E o Bonifácio fora o melhor dos
professores. Aprendera com ele a lidar com as ruas da cidade do Recife, com os
edifícios, com as pontes, com os homens, com as mulheres, com os soldados, com
os carros…
E com o rio?...
O rio não. Do rio ele tinha medo. O rio lembrava Diná. O sangue de Diná
na lama. O rio lembrava a morte. Ele não sabia fazer nada contra o rio. Lidar
com homens e mulheres, com os “tiras”, era muito fácil. Uma vez, um policial
civil quase o prendera. Usou de todas as artimanhas, sabedorias do mestre
Bonifácio, ofereceu metade do apurado do roubo recente e ficou livre. Os homens
são fáceis. As mulheres são fáceis. Mas o rio não é fácil. Nunca o rio, nunca
aquele tiro e esse medo de morrer.
Correu pelo calçadão da Rua da Aurora. Escutava atrás dele as fortes
pisadas dos policiais e gritos de raiva. Uma sirene aberta fez doer os seus
ouvidos. O sangue molhava sua camisa e pingava sobre o calçadão. Se fossem só
os homens! Mas agora era tudo! Os edifícios pareciam rir dentro da noite. As
ruas metiam medo. Pareciam repletas de fantasmas. Como se apiedando de sua
situação a noite escondeu a lua por trás de uma imensa nuvem. Tinha de se
esconder logo. Não aguentava mais. Com um salto felino se jogou nas águas
escuras. O corpo caiu na lama. Arrastou-se sofregamente e conseguiu se esconder
sob a ponte de ferro, deitando o corpo cansado num dos vãos abertos entre duas
colunas.
Dormiu e sonhou com Diná. Sonhou com Diná e com a cidade. Os edifícios
voando sobre sua cabeça, transformando-se em imagens de demônios. Sonhou com
Diná e com o rio. A maré baixa. A maré alta. A maré subindo e nunca descendo.
Subindo e nunca descendo. A água tocando seus pés descalços. O frio. O frio. O
frio…
Com o corpo meio roído pelos siris ou caranguejos, num dos vãos abertos
entre duas colunas, sob a ponte da Boa Vista, com uma bala nas costelas e um
sorriso nos lábios, foi encontrado morto às onze horas do dia seguinte, o corpo
de Inácio da Diná.
.........................
(*) Do
livro de contos "O Espelho da Alma
Janela e outros contos” - Rocha, RAFAEL, Edição do Autor/Recife /2009 – Premiado pela Academia
Pernambucana de Letras em 1988 - Prêmio Leda Carvalho
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