domingo, 16 de fevereiro de 2014

Inácio da Diná



Conto de Rafael Rocha – Jornalista – Recife/PE 
publicado no jornal HUMANITAS – janeiro/2013

Uma casa (?) de madeira caindo aos pedaços em alguma das margens do rio Capibaribe. Numa das margens? Coisa de grande monta escrever assim. Talvez alguma área de lama em algum braço morto do rio. Um pedaço de mangue ainda não aterrado em nome do progresso.
E, sobre o progresso, nestes espaços, para que falar? O mau cheiro das águas parecia vasculhar o perfil do casebre e dos outros casebres alinhados em torno. Qualquer olhar a se nortear pelo espaço afora, conseguiria ver ao longe os grandes edifícios quase envoltos pela penumbra do entardecer.
Um bulício de gente. Ordens. Militares fardados. Mulheres. Umas em prantos. Outras falando coisas por falar. Homens maltrapilhos, descalços. Crianças de barrigas inchadas, nuas, magras. Na realidade, tudo em olhos de espanto. Olhos de comiseração. Olhos de fome e, por que não dizer, olhos de miséria e desconfiança? Policiais militares. Policiais civis. Homens de branco saindo do casebre. Um corpo envolto num lençol sujo. Um rosto de menina. Olhos arregalados injetados de sangue.
E sangue. Tudo sangue nessa periferia cidadã. E o rio sujo. O braço morto do rio apresentando o trágico: a vida zumbi de homens e mulheres e meninos e meninas. Contraste com os homens fardados, os homens de branco, Contraste com o fumo hollywood, carlton em mistura com o fumo barato e às cachimbadas dos velhos mais distantes, acocorados, catando coisas invisíveis na lama marginal.
E aos olhos de Inácio, o corpo ensanguentado de Diná envolto no lençol sujo. Os cabelos de Diná: as tranças caídas e se balançando ao vento. E aos olhos de Inácio, as imagens do homem: nu e bestificado em cima do corpo da irmã, subindo e descendo, subindo e descendo, fazendo o sangue escorrer no chão de lama. Subindo e descendo, sem ligar aos gritos, sem ligar aos movimentos ásperos de fuga do pequeno corpo de treze anos.
E, aos olhos de Inácio, o olhar do homem. A faca nas mãos, gestos rápidos de fuga, vestindo-se, ameaçando-o, batendo-lhe no rosto com a palma da mão direita, suada, sangrando de alguma mordida da Diná. Diná se escondendo como um pequeno animal assustado. Um cãozinho que houvesse sofrido uma grande surra e, depois, o grito, o pulo sobre o homem, a mordida na garganta e Inácio vendo a faca subindo e descendo, subindo e descendo, subindo e descendo e o corpo da menina no mole, mole, caindo sobre a lama.
Que fazer com o garoto? Levá-lo. Para onde? Nada de perguntas idiotas! O menino não tem ninguém por ele. É órfão. É de menor idade. Para a Fundação? Não. Juizado primeiro. Vamos ver se ele nos diz alguma coisa.
Dizer o quê? Não conhecia o homem. Se era dali do meio deles? Não. Nunca o tinha visto. Você está mentindo garoto. Não, não senhor, nunca vi ele. Primeira vez hoje. Nunca o vi. Nunca vi ele.
Você vai para a escola, falou a mulher toda cheirosa de perfume. Você vai aprender a ler, escrever, trabalhar. Vai ser um homem. Vai esquecer tudo isso. Aprenderá tudo na escola.
A escola? Que seria aquela escola para os seus onze anos? Muitos meninos. Meninos maus. Meninos tristes. O Carola, que fumava cigarros cheirosos encarrapitado no imenso pé de jaca?
O Bonifácio, que metera um canivete nas nádegas do vigilante? O Enildo, que dormia na cama de todo mundo e tinha jeito de menina? O Espiridião, muito alto, negro como carvão e de quem todos tinham medo e diziam que já “despachara” dois caras da polícia lá pelas bandas do bairro dos Afogados?
A escola? Ele não podia esquecer a escola. A mulher cheirosa de perfume ele lembrava pouco. Só a vira uma vez. Mas a escola ensinara muita coisa. Ensinara a andar macio como um gato. Ensinara a fumar aqueles cigarros cheirosos. Ensinara a usar um canivete. E o Bonifácio fora o melhor dos professores. Aprendera com ele a lidar com as ruas da cidade do Recife, com os edifícios, com as pontes, com os homens, com as mulheres, com os soldados, com os carros…
E com o rio?...
O rio não. Do rio ele tinha medo. O rio lembrava Diná. O sangue de Diná na lama. O rio lembrava a morte. Ele não sabia fazer nada contra o rio. Lidar com homens e mulheres, com os “tiras”, era muito fácil. Uma vez, um policial civil quase o prendera. Usou de todas as artimanhas, sabedorias do mestre Bonifácio, ofereceu metade do apurado do roubo recente e ficou livre. Os homens são fáceis. As mulheres são fáceis. Mas o rio não é fácil. Nunca o rio, nunca aquele tiro e esse medo de morrer.
Correu pelo calçadão da Rua da Aurora. Escutava atrás dele as fortes pisadas dos policiais e gritos de raiva. Uma sirene aberta fez doer os seus ouvidos. O sangue molhava sua camisa e pingava sobre o calçadão. Se fossem só os homens! Mas agora era tudo! Os edifícios pareciam rir dentro da noite. As ruas metiam medo. Pareciam repletas de fantasmas. Como se apiedando de sua situação a noite escondeu a lua por trás de uma imensa nuvem. Tinha de se esconder logo. Não aguentava mais. Com um salto felino se jogou nas águas escuras. O corpo caiu na lama. Arrastou-se sofregamente e conseguiu se esconder sob a ponte de ferro, deitando o corpo cansado num dos vãos abertos entre duas colunas.
Dormiu e sonhou com Diná. Sonhou com Diná e com a cidade. Os edifícios voando sobre sua cabeça, transformando-se em imagens de demônios. Sonhou com Diná e com o rio. A maré baixa. A maré alta. A maré subindo e nunca descendo. Subindo e nunca descendo. A água tocando seus pés descalços. O frio. O frio. O frio…
Com o corpo meio roído pelos siris ou caranguejos, num dos vãos abertos entre duas colunas, sob a ponte da Boa Vista, com uma bala nas costelas e um sorriso nos lábios, foi encontrado morto às onze horas do dia seguinte, o corpo de Inácio da Diná.
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(*) Do livro de contos "O Espelho da Alma Janela e outros contos” - Rocha, RAFAEL, Edição do  Autor/Recife /2009 – Premiado pela Academia Pernambucana de Letras em 1988 - Prêmio Leda Carvalho 

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