quarta-feira, 31 de julho de 2019

HUMANITAS Nº 86 - AGOSTO DE 2019 - PRIMEIRA PÁGINA

MASSACRE EM NOME DE DEUS
- Nossa capa -
“Uma manhã perto dos portões do Louvre”, pintura de Edouard Debat-Ponsan mostra a católica rainha consorte da França, Catarina de Médici (de vestido negro), olhando o resultado de sua ordem de massacre aos protestantes. Fontes históricas estimam que entre 5 mil e 30 mil pessoas tenham sido mortas. As matanças foram organizadas e começaram em 24 de agosto de 1572, durando vários meses, primeiro em Paris e depois em outras cidades francesas. O rio Sena praticamente se transformou em um caudaloso rio de sangue. PÁGINA 8
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A MARCA DOS SETE ANOS

Ainda que o jornal impresso tenha saído de circulação continuamos na luta em nosso blog. Neste mês de agosto estamos a festejar sete anos de existência, sempre a trazer aos nossos leitores temas ligados à verdade histórica e ao humanismo universalista, seguindo o lema: Nada acima do homem e nenhum homem abaixo de outro.
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Na PÁGINA 7, o Especial do Humanitas apresenta a polêmica questão do vice-reino do Prata
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Veja na PÁGINA 6, a terceira parte do artigo sobre pessimismo e realidade escrito pela professora Divina de Jesus Scarpim (SP)
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Na PÁGINA 5, o escritor Araken Vaz Galvão (BA) continua sua dissertação sobre o despertar da África
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Leia, na PÁGINA 4, artigo especial enviado para o Humanitas de autoria do escritor Ivani Medina (RJ)



HUMANITAS Nº 86 - AGOSTO DE 2019 - PÁGINA 2

EDITORIAL
Centro de tudo

Ser humanista é exaltar as potencialidades do homem e afirmar sua dignidade. É valorizar o homem como um ser em busca de si. É ver o homem como um ser livre que faz suas escolhas e define o seu sentido.
O Humanismo considera o homem o centro de todas as coisas.
O homem conta com ele mesmo e só pode confiar em seus critérios.
Não queremos dizer que o homem deve tender ao individualismo, à violência ou ao egoísmo. 
Propomos que ele se desfaça das ideias preconcebidas das superstições e conheça a verdade das coisas para se autodeterminar.
Que seja um ser digno, conhecendo seus direitos, respeitando e dignificando os direitos de todos os demais seres humanos.
É esse sentido e apenas essa filosofia que os colaboradores deste Humanitas seguem. Qualquer outro tipo de Humanismo que não tenha o homem como centro de todas as coisas é charlatão.
Sete anos se passaram e a nossa busca do conhecimento continua sendo nossa linha editorial que muito nos agrada e nos faz felizes.
Esta edição de número 86 marca uma extensa gama de ações proclamadas durante sete anos a favor da vida humana.
Batalhamos contra a intolerância. Contra o preconceito. Contra o fascismo. E estamos sempre na luta a favor da tolerância, do laicismo, da liberdade de opinião e da democracia.
Do Recife para o Brasil e para o Mundo, o Humanitas defende o ideal humanista que tem o homem como centro de todas as coisas e acima de superstições.
Todos os colaboradores desta publicação são responsáveis pela concretização de mais um ano de existência deste jornal.
A eles, os nossos parabéns. A eles, o pedido maior para que continuem a postos sempre em defesa da humanidade.
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HUMANISMO UNIVERSALISTA É A NOSSA FILOSOFIA


Humanismo é a filosofia que coloca o ser humano na qualidade de principal ator no mundo. Penetra nas mais diversas posturas éticas, dando grande importância à dignidade, aspirações e capacidades humanas, particularmente à racionalidade.
Embora a palavra Humanismo possa ter vários sentidos, o significado filosófico se destaca por se contrapor ao divino, ao sobrenatural ou a uma autoridade superior.
Desde o Século XIX, o Humanismo tem sido erroneamente associado ao anticlericalismo, quando na verdade se associa ao antropocentrismo renascentista e ao laicismo dos filósofos iluministas.
O que é antropocentrismo? Essa filosofia diz que o ser humano é o centro do cosmos e que deve ser o centro das ações, da expressão cultural, histórica e filosófica. Tal pensamento se posiciona contra o teocentrismo, onde Deus (no caso, o deus cristão) é a referência central na vida do cidadão comum.
Este jornal segue a linha do Humanismo Universalista, tendo como valor maior a aspiração por uma nação humana universal, sem desejar um mundo uniforme, mas múltiplo em etnias, línguas e costumes; nas crenças, no ateísmo e na religiosidade.
Outro valor de suma importância pertencente ao Humanismo Universalista é a não-violência ativa como meio de atuação no mundo. O lema básico é: "Nada acima do ser humano e nenhum ser humano abaixo de outro".
O Humanismo Universalista é uma corrente de opinião que visa orientar e criar ações para desenvolver mudanças positivas no indivíduo e na sociedade.
A filosofia humanista universalista se inspira nos princípios de que o ser humano deve ser liberto perante o mundo para que possa atuar sobre seu próprio destino. 
Os princípios do Humanismo Universalista constituem a base de sua estrutura social e o compromisso de ação no mundo. Ei-los:
1-Colocar o ser humano como ator, valor e preocupação central, de modo que nada possa subjugá-lo e que nenhum ser humano seja superior ao outro.
2-Igualdade para todos. Lutar por direitos iguais perante a lei, e avançar em direção a um mundo de oportunidades iguais para todos.
3-Diversidade! Aceitar as características de cada povo e condenar toda discriminação que se baseie nas diferenças econômicas, raciais, sexuais, étnicas e culturais.
4-Dar suporte ao desenvolvimento do conhecimento, sem limitações impostas ao pensamento por preconceitos aceitos como verdades absolutas ou imutáveis​​.
5-Estado laico. Defesa da liberdade de pensamento e de crenças.
O Humanismo Universalista repudia não só as formas de violência física, mas todas as outras formas de violência sejam econômicas, raciais, sexuais, religiosas, morais e psicológicas.

HUMANITAS Nº 86 - AGOSTO DE 2019 - PÁGINA 3

REFÚGIO POÉTICO – CARTAS DOS LEITORES
                                                                                     

Motivo

Cecília Meireles (1901/1964)

Rio de Janeiro/RJ

 

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.

Cecília Benevides de Carvalho Meireles, foi uma jornalista, pintora, poeta e professora brasileira.
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A jaula
Alexandra Pzarnik
1936/1972 - Argentina

Lá fora faz sol.
Não é mais que um sol
mas os homens olham-no
e depois cantam.

Eu não sei do sol.
Sei a melodia do anjo
e o sermão quente
do último vento.
Sei gritar até a aurora
quando a morte pousa nua
em minha sombra.

Choro debaixo do meu nome.
Aceno lenços na noite
e barcos sedentos de realidade
dançam comigo.
Oculto cravos
para escarnecer meus sonhos enfermos.

Lá fora faz sol.
Eu me visto de cinzas.

Alejandra Pizarnik foi uma escritora e poetisa argentina. Tradução do poema por Virna Teixeira
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Fingimento
Francisco Carvalho
1927/2013 – Russas/CE

Não adianta fingir
que o tempo não passou
com os seus pendões vacilantes
de cortejo fúnebre.

Fingir que o rosto não foge
ao sarcasmo dos espelhos.
Que os deuses não zombam
do sorriso trincado dos velhos.

Fingir que ainda restam
vestígios da antiga chama.
- Sob o desenho das rugas
só o silêncio nos ama.

Francisco Carvalho foi um escritor e poeta brasileiro.
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Hora da partida
Sophia de Mello Breyner Andresen
1919/2004 - Portugal

A hora da partida soa quando
Escurece o jardim e o vento passa,
Estala o chão e as portas batem, quando
A noite cada nó em si deslaça.

A hora da partida soa quando
as árvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinasse.

Soa quando no fundo dos espelhos
Me é estranha e longínqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida.

Sophia de Mello Breyner Andresen foi uma das mais importantes poetisas portuguesas do século XX e a primeira mulher portuguesa a receber o mais importante galardão literário da língua portuguesa, o Prémio Camões, em 1999
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CARTAS DOS LEITORES

Parabéns por mais um ano de vida. Ivani Medina – Rio de Janeiro/RJ.
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Fico orgulhosa e feliz em parabenizar o Humanitas por mais um ano de vida e por ser uma de suas mais antigas leitoras, desde o site Cultura & Humanismo criado pelo meu amigo jornalista Rafael Rocha. Parabéns! – Jaqueline Ventapane – Rio de Janeiro/RJ

HUMANITAS Nº 86 - AGOSTO DE 2019 - PÁGINA 4

O QUE SE DEVE FAZER AGORA?
Ivani Medina é escritor e livre pensador. Atua no Rio de Janeiro/RJ

Eis a grande pergunta do Século XXI.
A questão se refere à embrulhada que o cristianismo se meteu no passado ao trazer o personagem Jesus Cristo do tempo mítico para o tempo histórico.
As religiões cristãs não sabem como responder nem o que fazer agora. É o fim do caminho.
No tempo mítico o que importava era a moral da história. Esse tempo não requer confirmações e tampouco explicações para os alegados fatos como ocorre no tempo histórico.
Na narrativa mítica quando se diz “Certa vez” ninguém pergunta quando, como ou porquê. O importante é o que se desenrola a partir daí.
Na narrativa histórica, quando se diz “em tal lugar, sob o governo de fulano de tal etc” se estabelece um compromisso com os registros cronológicos e o meio circundante da época.
Isto significa que se cria uma dependência indissolúvel com aquilo que se afirma e nenhuma outra forma de interpretação, senão a factual, é admitida. Jesus Cristo estaria mais seguro e seus seguidores mais sossegados se o tivessem deixado por lá, no tempo mítico.
Como um emblema da defesa da historicidade do Novo Testamento, eu diria que Jesus crucificado não pode ter base histórica, apenas porque a crucificação era um castigo utilizado pelos romanos por crimes contra o Estado, e alguns judeus sofreram esse tipo de castigo por sedição.
É dessa maneira frágil que se defende aquilo que no fundo se sabe que nunca existiu.
Não me refiro exclusivamente ao personagem principal, mas ao todo da versão literária.
Depois do Iluminismo a história sofreu transformações como se se libertasse da dependência religiosa, mas não foi bem assim.
No que respeita ao cristianismo, esta disciplina se investiu de técnicas para levar as crianças a brincarem no quintal.
A bíblia era o livro recomendado e autorizado ao seu estudo.
“Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos fizerdes como os meninos, de modo algum entrareis no reino dos céus”. (Mateus 18:3).
Parece lógico que se essa história surgiu da bíblia, seria esta o alvo de maior escrutinação.
No entanto, como só existe nela, o surgimento de um fato tão relevante no tempo histórico para o mundo ocidental deveria ser investigado em todas as suas instâncias e purgado rigorosamente das suas concepções teológicas.
Ao contrário, daquilo que exige o tempo histórico, a teologia tornou-se ditadora suprema para o estudo da história, cuja supervisão a tudo submetia.
Diante da inevitável suspeita que desperta esse escudo protetor, os fatos nos autorizam a conclusão de que o cristianismo do século I foi concebido no século II.
São os cristãos desse século que o anunciam e datam seus primeiros textos.
Esse segredo deveria ser cuidado por especialistas, como foi.
Depois da crença estabelecida os próprios crentes se encarregam da sua defesa.
O ensino oficial daria continuidade acadêmica a essa estratégia de favorecimento ideológico e ninguém teria coragem de dizer nada, pois não seria levado a sério.
Também eram padres os professores de história.
A cultura e o ensino estiveram por longos séculos nas mãos da Icar e do protestantismo, ensinando uma farsa e o ódio aos judeus.
Mas não se pode dizer que foi essa a razão do surgimento do cristianismo.
Não se pode dizer que o ódio foi sua mola propulsora e não o amor ao próximo.
Não se podia, porque daqui pra frente tudo vai ser diferente.
Lembremos de que o Papa João Paulo II, em 2000, esteve em Israel para pedir perdão aos judeus em nome da Igreja. Os protestantes se furtaram ao pedido.
Como viver para sempre com tamanha contradição?
Impossível!
Então como explicar o fato sem causar danos à crença?
Impossível!
Historiadores cristãos já admitem o acontecimento, ainda que timidamente. Não escancaram para não chocar.
Como admitir que o cristianismo começasse a morrer na manjedoura?
Como explicar ao crente que tudo aquilo não passou de invenção por causa de uma disputa com o judaísmo?
Que decepção para a bancada evangélica!
A indústria da fé naufraga e as possibilidades de coligações também.
Que bom para o Brasil!!
Não sei até quando suportarão arrastar a mentira de um Jesus histórico que iniciou um movimento de gente humilde na Judeia que acabou se tornando a maior religião do planeta.
Não dá para precisar a data da queda do cristianismo, mas o tombo é certo.
Há sinais por todo lado no Primeiro Mundo a despeito das mobilizações religiosas no Terceiro, que já se manifesta também contra a farsa.
Embora as evidências sejam reais, ainda “não se liga o nome à pessoa”.
Não defendo exatamente os judeus ou ataco os cristãos por gosto, como muitos, por temor ou preguiça mental podem tentar me explicar.
Defendo o direito à informação, em primeiro lugar, e não é de hoje. 
Entendo que pela origem da própria crença, para cristãos, isto só pode ser interpretado como um ataque. Paciência, eu não inventei nada disso.

HUMANITAS Nº 86 - AGOSTO DE 2019 - PÁGINA 5

O DESPERTAR DA ÁFRICA II
Araken Vaz Galvão é escritor e membro da Academia de Artes do Recôncavo. Atua em Valença/BA

As expedições mencionadas no artigo anterior abriram o caminho para a colonização de fato. Chegamos ao século XIX com os interesses econômicos e políticos das potências europeias disputando ferozmente cada palmo de terra africana.
O Reino Unido conseguiu estabelecer-se em uma faixa quase contínua deste o Egito até a África do Sul; a França com algumas colônias na linha equatorial, no Congo (Brazzavile) e na ilha de Madagastar; Portugal firmemente estabelecido em Guiné-Bissau, nas ilhas de São Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique; Alemanha no Togo, Tanganica e Camarões; Bélgica no Congo (belga); a Itália na Líbia, Etiópia e Somália; Espanha em parte do Marrocos, Saara Ocidental e no Golfo de Guiné.
Na Conferência de Berlim de 1884-1885 a partilha da África se consumou formalmente, na qual se firmou o princípio da ocupação efetiva como forma legitimadora da posse das colônias. A política colonial, como não podia deixar de ser, afetou ou destruiu completamente as estruturas econômica, sociais e tribais da África Negra.
Sendo que o mais grave dessa ocupação territorial foi a divisão de tribos (entre si), uma vez que a ocupação visava a posse das riquezas, em particular, minerais, ignorando os costumes dos povos, que viviam na região.
Pior: com esse tipo de colonização, ocorria de um país ocupar um importante rio, onde, muitas vezes, em cada uma das margens viviam povos que guerreavam secularmente, os quais, de uma hora para outra, viram-se “unidos” sob uma mesma organização política que impunha uma política de pax manu militari.
Precária, como toda paz desse tipo.
Ocorreu também de duas nações ocuparem - cada uma - uma margem do mesmo rio onde viviam povos da mesma etnia. As guerras e os massacres que desde o processo de independência até hoje ensanguentam os diferentes países da África têm sua origem nesses fatos.
Povos da mesma etnia, da mesma cultura, separados por uma política colonial que os ignorou, e que foram unidos a povos de outras etnias, às vezes rivais, e por isso lutam hoje, da mesma forma que lutaram durante séculos, muitas vezes usando os mesmo métodos bárbaros do passado, buscando a união com seus iguais que pertencem a países diferentes surgidos depois da descolonização.
É tão confusa a situação que restou do processo de colonização que resulta também confuso para o analista explicá-lo em poucas linhas. E se toda essa complexidade não fosse suficiente para aumentar a tragédia africana, existem ainda os resíduos da escravidão.
A mais esdrúxula das situações, é o caso da Libéria. Conhecida dos antigos egípcios desde época imemoriais, a costa da atual Libéria foi também colonizada, desde o século XV, por portugueses, holandeses e ingleses.
Essa parte da África negra, com esse nome, começa uma nova história a partir de 1818, quando exploradores dos Estados Unidos, financiados por milionários daquele país, ansiosos de se verem livres da “mancha negra” residual da escravidão, pois imaginavam que, com o passar dos tempos, fatalmente resultaria em uma forte miscigenação – terrível mal para o desejo de pureza racial dos WASPs (sigla de branco, anglo-saxão e protestante – isso, claro, em inglês – WASP, como se autodenomina a aristocracia dos Estados Unidos, de onde saíram os chamados “pais da pátria”) visitaram a região em busca de um espaço geográfico para repatriar todos os negros libertados da escravidão.
Dessa forma, em 1821, mediante o pagamento de uma vultosa soma, estabeleceu-se um acordo com os chefes que dominavam as áreas do litoral e, já no ano seguinte, foram enviados os primeiros ex-escravos como imigrantes.
 É preciso que se diga, porém, que dentro do conflito social gerado pela Guerra da Secessão, entre o norte industrializado e o sul agrícola e escravocrata, foi prometido pelos vencedores aos escravos recém-libertos, 20 acres de terra e uma mula, oferta que deveria representar uma espécie de indenização pelas mazelas da escravidão.
Entretanto, nos EUA da época, o capitalismo estava se consolidando, e tomando a sua forma que todos conhecemos.
Oferecer 20 acres e uma mula significava que os agraciados teriam que pagar pela dádiva, pois – todos sabemos! – no capitalismo, sistema nada fraterno e individualista, por excelência, “quem não trabalha não come”, mesmo não tendo onde trabalhar.
Então esse “altruísta” projeto fracassou. Ademais, nenhum estadunidense estava interessado em ajudar a se criar uma classe média (mesmo agrária) negra e, muito menos permitir que ela se desenvolvesse, o que levaria, fatalmente, a se consumar aquilo que aqueles brancos racistas que criaram aquele país mais temiam: miscigenação.
Bem, esses brancos – perdão, esses WASPs – racistas e arrogantes, que já tinham recebido a sua “terra prometida”, conseguida mediante a eliminação dos índios, graças a uma peculiar interpretação da bíblia, resolveram criar também para seus ex-escravos uma “terra prometida”.
Dessa forma, impunha-se mandar os negros de volta para a África. Assim nasceu a ideia de se ofertar aos ex-escravos para eles – também! – aquela Canaã.
Criado o novo país, que recebeu – ironia a parte – o nome de Libéria (cuja capital é Monróvia – em homenagem ao presidente Monroe, aquele que proclamou:
A América para os americano, entendendo-se por americanos os nascidos nos EUA), estava criada também uma nova forma de colonização, prática que depois se tornou comum na política externa dos estadunidenses, e que foi seguida com poucas exceções: não manter colônias, apenas “estados associados” – ligados a então nascente potência americana –, os quais, eventualmente, poderiam ser absolvidos como mais um estado da União. 
A terra prometida aos ex-escravos – que é considerado o primeiro país independente da África –, já nasceu dependente, pois, na prática, nunca passou de um protetorado das grandes empresas dos Estados Unidos, em particular, a Firestone Tire and Rubber Company para produzir látex para os seus pneus e demais produtos de borracha.

HUMANITAS Nº 86 - AGOSTO DE 2019 - PÁGINA 6

PESSIMISMO E REALIDADE (Parte 3)
Divina de Jesus Scarpim colaboradora deste Humanitas é professora e escritora. Atua em São Paulo/SP

Sou branca, sou mulher, sou heterossexual, sou paulista, sou brasileira, sou professora, sou classe média, sou velha, tive lar, tive família, tive amor, tive acesso à educação, não tenho nenhum tipo de limitação ou deficiência física, sou casada, nunca fui espancada pelo meu marido, sou mãe de um filho heterossexual e intelectual e fisicamente “perfeito”.
Cada uma dessas características me torna uma pessoa pertencente a um determinado grupo e em alguns tive “permissão” para internalizar algum tipo de preconceito.
Em maior ou menor nível foi o que fiz e, com o tempo, tive que observar, questionar, pensar e aprender muito para me livrar deles.
Nunca tenho certeza de ter conseguido, por isso continuo afiando minha empatia, me educando e me policiando.
A verdade sobre mim, se é que há alguma, é que nunca estarei pronta e sempre serei aquela pessoa que não consegue entender aqueles que não lutam contra seus preconceitos e que, ao contrário, se agarram a eles como animais famintos.
Há pessoas que em lugar de tentar olhar para aquele que é alvo de preconceito, desvia os olhos, propagando a “verdade” de que o preconceito não existe porque somos um povo pacífico e tolerante.
Há pessoas que em lugar de tentar se colocar no lugar daquele que é alvo de preconceito fica procurando “justificativas” para poder dizer absurdos como “Isso não é natural”, “Homossexuais são todos promíscuos”, “Eu não sou homofóbico, mas...”.
Há pessoas que replicam entusiasticamente frases do tipo “Feministas são mulheres feias e mal-amadas”, “Mas isso é puro mimimi, somos todos iguais e todos podem vencer na vida com o próprio esforço”, “Ela queria o quê, andando com essa roupa?”, “Tá com pena? Leva pra sua casa!”, “Por que não tem o dia do orgulho hétero?”, “Bandido bom é bandido morto”, “A história comprova, índio é tudo vagabundo”.
Há pessoas que replicam, divulgam e, muito pior, ensinam aos seus filhos todos esses “conceitos”, todas essas “pérolas de sabedoria” e outras “verdades” do tipo, sempre destituídas de empatia, conhecimento, interesse, raciocínio, e verificação honesta dos fatos.
E - o mais terrível - fazem isso com ênfase e orgulho, sem qualquer resquício de bondade.
Muitas mandam mensagens de otimismo, mensagens religiosas, mensagens positivas impregnadas de palavras adocicadas como “amor”, “amizade”, “felicidade”, “carinho”.
Muitas frequentam assiduamente igrejas, templos, sinagogas, terreiros, encontros, retiros espirituais, marchas para Jesus, e outros eventos e lugares de confraternização, sempre em nome de um deus que, dizem, é todo bondade e amor.
E elas, as pessoas fiéis, pias, tementes, se comportam nessas ocasiões, e em muitos casos também fora delas, como pessoas que visivelmente se julgam santas, iluminadas, ilibadas.
Elas em geral demonstram sentir que são almas puras ou, no mínimo, que estão a caminho da purificação. Espalham a “palavra”, divulgam sua fé, usam camisetas e bijuterias com os símbolos que as distinguem como parte daquele grupo privilegiado que terá direito a um lugar privilegiado “à mão esquerda de deus pai todo poderoso”.
Como elas conseguem é, para mim, um mistério maior do que a questão do surgimento do universo.
Essas pessoas são más? São boas? Se não podemos chegar a uma resposta definitiva sobre o que é o bem e o que é o mal, nada mais previsível do que não haver resposta definitiva para essas duas perguntas.
Nesse caso, posso dizer o que penso e argumentar a respeito, e o farei: Essas pessoas são más! E, mais. Essas pessoas são hipócritas e egoístas. Principalmente egoístas.
Mas, e essa é a parte mais difícil de concluir e assumir: Elas não são assim tão diferentes de cada um dos que, como eu, ficam indignados com esses comportamentos.
Cada um de nós, em algum nível, nos comportamos como essas pessoas e o máximo que podemos dizer é que elas, ou algumas delas, são mais nocivas do que nós, porque levam seu egoísmo a um grau mais elevado do que a média dos seres humanos o fazem.
Isso se chama conviver com contradições, e é o que melhor fazemos, de acordo com Yuval Noah Harari, e eu concordo completamente com ele, apenas lamento muito mais... e isso talvez seja mais uma mostra do meu egoísmo atávico. 
Quem me autorizou a, com base apenas em um livro de história que tem que cumprir certos requisitos para ser considerado como tal, concluir que EU sou mais sensível às mazelas da minha raça?