Pessimismo e realidade (Parte 2)
Divina Scarpim
colaboradora deste Humanitas é professora e escritora. Atua em São
Paulo/SP
Não é
fácil, seguramente não é fácil ser otimista quando vemos o quanto a maioria das
pessoas está sempre disposta a aderir, a defender e a lutar por qualquer ideia
que a favoreça, seja como indivíduo seja como grupo.
Principalmente como grupo, porque além do
sentimento de superioridade individual há sempre a valiosíssima sensação de
pertencimento, de acolhimento, de ser “parte de algo maior”, por mais que esse
“maior” seja um mito, uma invenção, uma mentira, uma fraude.
Para se sentirem privilegiados, superiores,
melhores e mais dignos do que todos os demais, pessoas e grupos são capazes de
acreditar em qualquer mentira confortável, não só se recusam a usar a razão
naquele quesito como chegam a hostilizar - a ponto de usar a violência mais
letal - qualquer um que tente quebrar ou expor essa mentira.
Quase todos os discursos que defendem algum
tipo de superioridade de um determinado grupo sobre outro está usando a
primeira pessoa, do plural ou do singular.
“Eu”
sou sempre um membro do grupo que defendo como aquele que tem direitos “inalienáveis”, “justificados”, “sagrados”,
“históricos” e “ele” é sempre um
membro do grupo que deve se curvar diante da minha superioridade.
Claro que, como sou inteligente, muitas
vezes consigo camuflar meu discurso de forma que a dicotomia eu/ele não
fique tão clara.
E posso até, porque está claro que sou
superior, conseguir que “ele” se convença
de que meu discurso é impessoal e isento.
Posso até mesmo conseguir que um ou outro “ele” reproduza meu discurso, se
convença e convença outros “eles” a se colocarem sob a minha “proteção”.
Afinal, eu sou mais inteligente!
No livro Sapiens - páginas 147-148 - ficamos sabendo que as razões
que levaram os europeus que colonizaram as Américas a escravizarem os africanos
em lugar dos europeus do leste ou dos asiáticos não tiveram nada a ver com
inferioridade biológica dos negros ou maldição bíblica.
De acordo com o livro, três fatores os
levaram a optar pelos africanos: a menor distância da América, o fato de já
existir um comércio do tipo para o Oriente Médio e a maior resistência dos
africanos às doenças tropicais, afinal, transportar pessoas que morreriam de
malária antes de dar lucro não era interessante.
Ou seja, basicamente, a escolha teve como
razão o que costuma ser a razão maior na criação de todo e qualquer mito,
mentira ou tabu: Dinheiro e poder.
Todas as demais “razões” são habilmente criadas e divulgadas depois e, como disse
Joseph Goebbels, uma mentira contada muitas vezes se transforma em uma verdade.
A mentira que cria e sustenta o preconceito
se entranha de tal forma que continua sendo “verdade”
para muitas pessoas e grupos e, em muitos aspectos continua determinando a
estrutura de uma sociedade, mesmo depois de anos, décadas ou até séculos de
acúmulo de evidências e provas de que acreditou em mentiras.
Ainda existem nazistas, ainda existem
racistas, ao que parece ainda existem parsis e ainda existem pessoas e grupos
que defendem a “verdade” irracional
que justifica seus preconceitos com a violência mais brutal.
Aparentemente não há racionalidade que
possa superar o prazer estúpido e animalesco de se sentir superior e de ser
parte de um grupo privilegiado.
O animal que somos continua sendo o animal
que mata e extermina em nome da sua alegada e nunca comprovada superioridade.
Isso é verdade para a mentira de que “Os arianos são superiores e os judeus são a
escória que deve ser eliminada”, é verdade para “Os negros nasceram para serem escravos, é da natureza deles” e,
pelo que diz a personagem Aban na página 175 de outro livro que estou lendo, A distância entre nós, de Thrity
Umrigar: “Esses ghatis são sempre ghatis.
Nós, parsis, somos os únicos que tratam as empregadas como rainhas. E sempre
recebemos o troco”, é verdade para os herdeiros das antigas castas
superiores indianas.
Nesse capítulo do livro, no qual outros
personagens justificam e defendem estupidamente a ideia da supremacia parsi e
da inferioridade dos não parsis, o que me pareceu emblemático foi que a mulher
que se coloca contra todo o discurso preconceituoso está defendendo uma
empregada que ela mesma não permite sequer que se sente em uma cadeira de sua
casa.
Para
mim, essa personagem mostrou de forma muito eficiente a dificuldade que até
mesmo as pessoas mais cultas, esclarecidas e sensíveis têm de se livrarem do
preconceito internalizado em sua educação e sua cultura.
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