quinta-feira, 4 de julho de 2019

HUMANITAS Nº 85 - JULHO DE 2019 - PÁGINA 5

Pessimismo e realidade (Parte 2)
Divina Scarpim colaboradora deste Humanitas é professora e escritora. Atua em São Paulo/SP

Não é fácil, seguramente não é fácil ser otimista quando vemos o quanto a maioria das pessoas está sempre disposta a aderir, a defender e a lutar por qualquer ideia que a favoreça, seja como indivíduo seja como grupo.
Principalmente como grupo, porque além do sentimento de superioridade individual há sempre a valiosíssima sensação de pertencimento, de acolhimento, de ser “parte de algo maior”, por mais que esse “maior” seja um mito, uma invenção, uma mentira, uma fraude.
Para se sentirem privilegiados, superiores, melhores e mais dignos do que todos os demais, pessoas e grupos são capazes de acreditar em qualquer mentira confortável, não só se recusam a usar a razão naquele quesito como chegam a hostilizar - a ponto de usar a violência mais letal - qualquer um que tente quebrar ou expor essa mentira.
Quase todos os discursos que defendem algum tipo de superioridade de um determinado grupo sobre outro está usando a primeira pessoa, do plural ou do singular.
“Eu” sou sempre um membro do grupo que defendo como aquele que tem direitos “inalienáveis”, “justificados”, “sagrados”, “históricos” e “ele” é sempre um membro do grupo que deve se curvar diante da minha superioridade.
Claro que, como sou inteligente, muitas vezes consigo camuflar meu discurso de forma que a dicotomia eu/ele não fique tão clara.
E posso até, porque está claro que sou superior, conseguir que “ele” se convença de que meu discurso é impessoal e isento.
Posso até mesmo conseguir que um ou outro “ele” reproduza meu discurso, se convença e convença outros “eles” a se colocarem sob a minha “proteção”.
Afinal, eu sou mais inteligente!
No livro Sapiens - páginas 147-148 - ficamos sabendo que as razões que levaram os europeus que colonizaram as Américas a escravizarem os africanos em lugar dos europeus do leste ou dos asiáticos não tiveram nada a ver com inferioridade biológica dos negros ou maldição bíblica.
De acordo com o livro, três fatores os levaram a optar pelos africanos: a menor distância da América, o fato de já existir um comércio do tipo para o Oriente Médio e a maior resistência dos africanos às doenças tropicais, afinal, transportar pessoas que morreriam de malária antes de dar lucro não era interessante.
Ou seja, basicamente, a escolha teve como razão o que costuma ser a razão maior na criação de todo e qualquer mito, mentira ou tabu: Dinheiro e poder.
Todas as demais “razões” são habilmente criadas e divulgadas depois e, como disse Joseph Goebbels, uma mentira contada muitas vezes se transforma em uma verdade.
A mentira que cria e sustenta o preconceito se entranha de tal forma que continua sendo “verdade” para muitas pessoas e grupos e, em muitos aspectos continua determinando a estrutura de uma sociedade, mesmo depois de anos, décadas ou até séculos de acúmulo de evidências e provas de que acreditou em mentiras.
Ainda existem nazistas, ainda existem racistas, ao que parece ainda existem parsis e ainda existem pessoas e grupos que defendem a “verdade” irracional que justifica seus preconceitos com a violência mais brutal.
Aparentemente não há racionalidade que possa superar o prazer estúpido e animalesco de se sentir superior e de ser parte de um grupo privilegiado.
O animal que somos continua sendo o animal que mata e extermina em nome da sua alegada e nunca comprovada superioridade.
Isso é verdade para a mentira de que “Os arianos são superiores e os judeus são a escória que deve ser eliminada”, é verdade para “Os negros nasceram para serem escravos, é da natureza deles” e, pelo que diz a personagem Aban na página 175 de outro livro que estou lendo, A distância entre nós, de Thrity Umrigar: “Esses ghatis são sempre ghatis. Nós, parsis, somos os únicos que tratam as empregadas como rainhas. E sempre recebemos o troco”, é verdade para os herdeiros das antigas castas superiores indianas.
Nesse capítulo do livro, no qual outros personagens justificam e defendem estupidamente a ideia da supremacia parsi e da inferioridade dos não parsis, o que me pareceu emblemático foi que a mulher que se coloca contra todo o discurso preconceituoso está defendendo uma empregada que ela mesma não permite sequer que se sente em uma cadeira de sua casa.
Para mim, essa personagem mostrou de forma muito eficiente a dificuldade que até mesmo as pessoas mais cultas, esclarecidas e sensíveis têm de se livrarem do preconceito internalizado em sua educação e sua cultura.

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