quarta-feira, 31 de julho de 2019

HUMANITAS Nº 86 - AGOSTO DE 2019 - PÁGINA 6

PESSIMISMO E REALIDADE (Parte 3)
Divina de Jesus Scarpim colaboradora deste Humanitas é professora e escritora. Atua em São Paulo/SP

Sou branca, sou mulher, sou heterossexual, sou paulista, sou brasileira, sou professora, sou classe média, sou velha, tive lar, tive família, tive amor, tive acesso à educação, não tenho nenhum tipo de limitação ou deficiência física, sou casada, nunca fui espancada pelo meu marido, sou mãe de um filho heterossexual e intelectual e fisicamente “perfeito”.
Cada uma dessas características me torna uma pessoa pertencente a um determinado grupo e em alguns tive “permissão” para internalizar algum tipo de preconceito.
Em maior ou menor nível foi o que fiz e, com o tempo, tive que observar, questionar, pensar e aprender muito para me livrar deles.
Nunca tenho certeza de ter conseguido, por isso continuo afiando minha empatia, me educando e me policiando.
A verdade sobre mim, se é que há alguma, é que nunca estarei pronta e sempre serei aquela pessoa que não consegue entender aqueles que não lutam contra seus preconceitos e que, ao contrário, se agarram a eles como animais famintos.
Há pessoas que em lugar de tentar olhar para aquele que é alvo de preconceito, desvia os olhos, propagando a “verdade” de que o preconceito não existe porque somos um povo pacífico e tolerante.
Há pessoas que em lugar de tentar se colocar no lugar daquele que é alvo de preconceito fica procurando “justificativas” para poder dizer absurdos como “Isso não é natural”, “Homossexuais são todos promíscuos”, “Eu não sou homofóbico, mas...”.
Há pessoas que replicam entusiasticamente frases do tipo “Feministas são mulheres feias e mal-amadas”, “Mas isso é puro mimimi, somos todos iguais e todos podem vencer na vida com o próprio esforço”, “Ela queria o quê, andando com essa roupa?”, “Tá com pena? Leva pra sua casa!”, “Por que não tem o dia do orgulho hétero?”, “Bandido bom é bandido morto”, “A história comprova, índio é tudo vagabundo”.
Há pessoas que replicam, divulgam e, muito pior, ensinam aos seus filhos todos esses “conceitos”, todas essas “pérolas de sabedoria” e outras “verdades” do tipo, sempre destituídas de empatia, conhecimento, interesse, raciocínio, e verificação honesta dos fatos.
E - o mais terrível - fazem isso com ênfase e orgulho, sem qualquer resquício de bondade.
Muitas mandam mensagens de otimismo, mensagens religiosas, mensagens positivas impregnadas de palavras adocicadas como “amor”, “amizade”, “felicidade”, “carinho”.
Muitas frequentam assiduamente igrejas, templos, sinagogas, terreiros, encontros, retiros espirituais, marchas para Jesus, e outros eventos e lugares de confraternização, sempre em nome de um deus que, dizem, é todo bondade e amor.
E elas, as pessoas fiéis, pias, tementes, se comportam nessas ocasiões, e em muitos casos também fora delas, como pessoas que visivelmente se julgam santas, iluminadas, ilibadas.
Elas em geral demonstram sentir que são almas puras ou, no mínimo, que estão a caminho da purificação. Espalham a “palavra”, divulgam sua fé, usam camisetas e bijuterias com os símbolos que as distinguem como parte daquele grupo privilegiado que terá direito a um lugar privilegiado “à mão esquerda de deus pai todo poderoso”.
Como elas conseguem é, para mim, um mistério maior do que a questão do surgimento do universo.
Essas pessoas são más? São boas? Se não podemos chegar a uma resposta definitiva sobre o que é o bem e o que é o mal, nada mais previsível do que não haver resposta definitiva para essas duas perguntas.
Nesse caso, posso dizer o que penso e argumentar a respeito, e o farei: Essas pessoas são más! E, mais. Essas pessoas são hipócritas e egoístas. Principalmente egoístas.
Mas, e essa é a parte mais difícil de concluir e assumir: Elas não são assim tão diferentes de cada um dos que, como eu, ficam indignados com esses comportamentos.
Cada um de nós, em algum nível, nos comportamos como essas pessoas e o máximo que podemos dizer é que elas, ou algumas delas, são mais nocivas do que nós, porque levam seu egoísmo a um grau mais elevado do que a média dos seres humanos o fazem.
Isso se chama conviver com contradições, e é o que melhor fazemos, de acordo com Yuval Noah Harari, e eu concordo completamente com ele, apenas lamento muito mais... e isso talvez seja mais uma mostra do meu egoísmo atávico. 
Quem me autorizou a, com base apenas em um livro de história que tem que cumprir certos requisitos para ser considerado como tal, concluir que EU sou mais sensível às mazelas da minha raça?

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