domingo, 16 de fevereiro de 2014

O Tupi nosso de cada dia

Texto de Araken Passos Vaz Galvão Sampaio – Escritor – Valença/BA
publicado no HUMANITAS nº 6 – janeiro/2013 

Os índios nunca fizeram mingau de farinha de trigo, faziam-no apenas 
de araruta, milho ougoma ou farinha fina de mandioca. 
O civilizado é que o fizera de outras farinhas.

Todas as quartas-feiras vou participar das reuniões do Conselho Estadual de Cultura – CEC – em Salvador(*). Ao sair de minha casa, em Valença, passo em frente de um estabelecimento comercial que se chama “Maria do Mingau”. É mais do que uma casa de pasto, já é quase um ponto turístico, uma parada obrigatória devido à excelente qualidade e fartura do café da manhã que serve. Daí as filas de carro à porta, com a casa permanecendo cheia até por volta das dez da manhã.
Cito isso porque durante a viagem da minha família para Minas – da qual falei no primeiro capítulo –, quando estávamos nas estações ferroviárias, havia miríades de vendedoras de mingau; de milho, de puba ou carimã, de tapioca, de araruta, e até de arroz ou de outras farinhas mais requintadas.
Deixando um pouco de lado aquela longínqua viagem de minha infância, e fixando-me nesta pequena que faço semanalmente para comparecer ao CEC, depois de passar pela casa de “Maria do Mingau”, começo a ler um livro que sempre levo, como forma de quebrar a monotonia da repetição da viagem. Chego a Bom Despacho, na ilha de Itaparica, e deparo-me com os gritos de mulheres e homens vendendo “bolo de carimã, pamonha de carimã, amendoim cozido”, além de mingaus dos mais variados tipos. Carimã, pamonha, amendoim e mingau são palavras tupis.
Vejo-me novamente frente ao tupi nosso de cada dia. Lamento apenas que todas aquelas iguarias sejam muito doces, e eu, sendo diabético, já não posso mais consumir açúcar...
Ao ouvir falar em bolo de tapioca, sempre penso que o pessoal do sul costuma erroneamente chamá-lo de beiju dos índios, – o “MBEIJU, o enroscado, o enrolado, o bolo de mandioca (da goma ou polvilho) torrado”, de tapioca. Esta palavra oriunda do tupi TYPY-OCA, que vem a ser aquilo que é “retirado ou colhido do fundo; o sedimento, o coágulo, o resíduo do suco da mandioca”, ou seja, aquilo que nós, baianos, chamamos de goma e em Minas é polvilho doce ou fécula de mandioca. Com a puba ou carimã – que Sampaio registra como “QUIRIN-MÃ, o bolo tenro, ou punhado de coisa macia. É o produto da mandioca fermentada e amolecida” – também ocorre o mesmo. Eles, no Sul, chamam-na de polvilho azedo. Os mineiros fazem com ela, a puba ou carimã, o delicioso pão de queijo.
Com a mente repleta de lembranças de palavras tupis, embarco no ferry – que vem a ser o nome com que a aculturação impôs no lugar de balsa –, lá encontro mais vendedores com os mesmos produtos. Fixo-me no mingau, por lembrar-me de uma passagem minha pela Bolívia.
Estávamos, meu amigo Zenildo Barreto e eu, em casa de uma amiga, que era deputada de um partido da esquerda de lá. Ela tinha uma filha, a que chamava de wawa, que vem a ser menina – se não me equivoco com a grafia – em aimara, um dos idiomas do altiplano Andino. Não sei por que motivo a menina não queria comer, sugeri que ela fizesse um mingau de milho, ao que ela, minha amiga, inquiriu-me: O que é mingau?
Dei-lhe uma longa explicação. Mas naquele momento eu mesmo não sabia que mingau era uma palavra tupi. Só anos depois fui ver no dicionário. O que encontrei no Aurélio é o que se segue: “Mingau: (tupi) Papa de farinha de trigo ou de mandioca. Iguaria de consistência pastosa, feita geralmente de leite açucarado e engrossado com farinha”. Com essa primeira consulta vi como a língua é dinâmica. Claro que os índios nunca fizeram mingau de farinha de trigo, faziam-no apenas de araruta, milho ou goma ou farinha fina de mandioca. O civilizado é que o fizera de outras farinhas. Sampaio registra-o como “MINGÁU (Mingá-u), o comer visguento, as papas ralas de mandioca. Isso é, em respeito à etimologia, mingaû”. 
Por essa via, lembrei-me de minha mãe, quando acordávamos com aquela matéria mucosa que se acumula na boca das crianças durante o sono, e ela nos dizia que aquilo era o “Mingau-das-almas”. Foi no Aurélio que descobri que o mingau de puba tem, em tupi, uma denominação específica: Mingaupitinga. Lembrar-me de minha mãe, por razões que eu mesmo desconheço, penso em comida, talvez por ela estar sempre na cozinha cuidando do alimento. Por essa lembrança, tenho que chegar à culinária baiana. Além do mais, falar em comida sempre dá fome... E nesse viés da cozinha tupi, vamos quebrar alguns mitos.
O primeiro é relativo a palavra caruru. Caaruru: Cuja corruptela a transformou em caruru, significa mato de folha grossa, intumescida, sumarenta. É também o nome de uma iguaria da culinária baiana, hoje célebre, que era feita originalmente com a erva conhecida como língua-de-vaca(1). 
Se hoje ela é feita com quiabo(2), deve-se, por certo, ao íntimo contato entre dois povos subjugados: os índios e os negros. Não nego que a comida tenha sido modificada pelos negros, a palavra, porém, é tupi. 
Aliás, sempre que encontramos uma comida indígena em cujo preparo hoje entram dendê e coco, não há dúvida, aí está a mão do negro. Ou melhor, a mão da negra. Moqueca é um desses casos.
Os diferentes povos africanos em geral – refiro-me aos da África Negra – eram fundamentalmente guerreiros, pastores e caçadores. A pesca era – devia ser – a última das atividades daqueles povos.
E isso se explica facilmente pela abundância de caça.
Matar um antílope, por exemplo, garantia comida farta para toda uma numerosa família. Já a pesca, além da sujeição aos imprevistos das marés, implicava em se conseguir uma grande quantidade de pescado. E se essa fosse realizada em rio as dificuldades eram bem maiores.
Entre os africanos a pesca era a exceção, ao contrário dos nossos índios. Em nossos rios estão (ou estavam) – afirmam alguns especialistas – 75% dos peixes de água doce do mundo.

Enquanto em nossas selvas rareavam animais de grande porte(3) e possuía fartura de peixes, por isso podemos dizer que nossos índios – mesmo aqueles que praticavam a agricultura – eram em primeiro lugar, pescadores, caçadores de animais de pequeno porte e, claro, guerreiros.
Nada mais natural que todos os quitutes, baianos, no caso, a base de pescado, hoje atribuída aos negros, nada mais seja do que comida indígena na qual a mão perita da negra colocou seus temperos, em particular, o dendê e o coco, porque o amendoim e a castanha de caju(4) e o coentro largo ou da Índia, por exemplo, são produtos da terra. Assim chegamos à moqueca.
Mas isso, a moqueca, é assunto para o próximo capítulo.
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(*) Moro na cidade de Valença, BA, e esta observação refere-se a minhas viagens semanais, em uma distância de 250 km, que é feita de carro, balsa e carro novamente.
(1) Esta saborosa erva, que pode ser classificada como hortaliça, ainda que só seja cultivada no fundo dos quintais das pessoas muito pobres, cujo nome popular “língua-de-vaca” (Chaptalia integérrima) vem de um dos seus nomes indígenas: língua de tapira ou de anta (tapiirapecu), é conhecida também como suçuaia, variedade que possui o nome científico de Elephantopus scaber, além de saborosa, possui muito ferro.
(2) Esse fruto, quiabo, embora o Aurélio informe que a palavra é de origem incerta, possivelmente veio da África, trazido pelos portugueses e não pelos escravos, porque – convenhamos! – nenhum homem acorrentado e transportado em condições infra-humanas teria condições para trazer sementes. Se o fizesse, comê-las-ia, por certo, nos momentos de fome aguda.
(3) Excluídos os bisões das pradarias dos Estados Unidos, e alguns rebanhos de grandes animais do norte do Canadá, tínhamos os tapiíra (antas), animais solitários, que só se encontram para o acasalamento, e os caititus e queixadas, que viviam em bandos. Os veados, que eram animais de porte, não viviam em bandos, o que predominava entre nós eram os peixes.
(4) Outros ingredientes típicos da suposta culinária negra, como o gergelim e a gengibre, são, respectivamente, de origem árabe e chinesa, e foram acrescentados mais tarde. Quanto às pimentas, quando os escravos aqui chegaram os índios já a comiam, sendo a mais famosa delas a cumbari ou comarim.

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