segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

O Tupi nosso de cada dia

Texto de Araken Passos Vaz Galvão Sampaio – Escritor – Valença/BA
publicado no HUMANITAS nº 7 – Fevereiro/2013 

Existia, entre os índios da nação tupi, um sistema de conservar a carne - caças
e pescados - conseguido através de um método chamado moquém


Tentei mostrar, no capítulo anterior, que o nosso índio, ao contrário dos diferentes tipos de africanos que para aqui vieram, era pescador por excelência. Desejo mostrar agora, ao falar da moqueca, palavra que Sampaio (pág. 285, Geografia) diz ser a corruptela “Moqué ou pó-kêca”, que significa algo: “feito embrulho; o embrulhado ou envolvido. Peixe assado entre folhas, que o envolve e no meio das cinzas”, que essa iguaria, com esse nome, pode muito bem ter origem indígena, a qual as negras acrescentaram o dendê e o coco, além de outros pequenos truques culinários. 
Até nossos dias na Amazônia – e isso equivale dizer que entre todos os brasileiros de lá - indígenas ou não -, a moqueca ainda é feita com postas de peixe embrulhadas em folhas de bananeiras(1), não mais assadas nas cinzas - que os tempos são outros - mas cozidas em uma panela. No Espírito Santo - onde a presença indígena (quase apagada, para o observador pouco atento) não se nota no primeiro momento - o principal prato da culinária local, verdadeiro orgulho do seu povo(2) é justamente a moqueca capixaba. Essa iguaria é preparada por um processo curioso, pelo menos o é para um leigo nas artimanhas da cozinha. 
Digamos que, o cozimento da moqueca capixaba, é realizado por processo muito próximo ao do abafamento, similar ao que era feita pelos índios, usando a folha de bananeira e as cinzas para que a carne cozesse sem se desidratar. O grande e óbvio segredo para quem assa carne seja ela de boi, de antílope, de peixe ou de anta e - porque não - até de gente, como faziam alguns antropófagos(3), é não permitir sua completa desidratação.
O Aurélio eletrônico, entretanto, registra esta palavra - moqueca - como vinda do quimbundo: mu’keka, porém não nos informa o que ela significava lá na região de Angola, onde esse idioma predomina ainda hoje. Observe que a palavra possivelmente vinda da África começa com o fonema MU, enquanto a indígena começa com o fonema MO. 
Deixando esse pequeno detalhe de lado, vemos que no seu verbete - que nada diz sobre o significado ou se havia alguma comida similar naquela região da África - há apenas uma explicação de como é o prato: “Prato típico brasileiro, em geral de peixe ou de mariscos, podendo também ser feito de galinha, ovos, etc., e que consta de um guisado temperado com salsa, coentro, limão, cebola e sobretudo leite de coco, azeite-de-dendê e pimenta-de-cheiro”. Diz ainda que, no Pará, comida similar é chamada de Poqueca (pó-kêca?). Registremos este detalhe. 
Depois de dar a informação sobre uma cataplasma feita com “folhas de mangueira e de fumo”, usado para dor de cabeça, Aurélio nos remete a confrontar com moquenca(4). O curioso é que, relacionada com essa palavra, aparece novamente o elemento folha. 
Por último, o mesmo Aurélio nos informa que a palavra moqueca pode ter vindo do verbo moquear, por influência da moqueca africana, e que no Amazonas refere-se ao “peixe moqueado envolto em folha de bananeira”. 
Agora, para destrinchar essa controvérsia, vamos ver o que é moquear ou moquém, de onde poderia ter vindo a palavra indígena moqueca. Existia, entre os índios da nação tupi, um sistema de conservar a carne - caças e pescados - conseguido através de um método chamado moquém. Este sistema, de há muito incorporado à cultura popular nordestina(5) é muito semelhante ao defumando.
O Aurélio diz que o moquém consiste em uma “grelha de varas para assar ou secar a carne ou o peixe”. Diz ainda que, moquear é “secar (a carne ou o peixe) no moquém, para conservá-los. Assar (a carne) em moquém”. 
Sampaio diz ainda que esta grafia é o resultado da corruptela de “Mocaé ou Mô-caê; secadouro, assador; gradeado de varas sobre brasas para assar a caça ou peixe”. 
Vemos, dessa forma, “Mocaé ou Mô-caê” como a raiz na formação de outras palavras, como pode ter ocorrido com moqueca. O que é preciso registrar é que houve uma intensa troca de vivência entre índios e negros - bem maior do que registra nossa vã informação -, o que era natural, entre povos subjugados, um conhecedor da terra e de todas as artimanhas das guerras entre tribos rivais; os outros, também guerreiros, mas desconhecedores da terra e de como sobreviver em um meio que lhes era hostil. Essa vivência ficou bem patenteada em Palmares, onde a predominância de índias - evidenciada através dos fragmentos de cerâmica que ali ainda são encontrados - foi quase total.
Mas, voltemos à cozinha, ou melhor, às comidas de origem tupi. E volto com Quibebe.
O Aurélio registra que a palavra quibebe (tanto com o é aberto assim como com ê fechado) tenha sua origem no idioma africano quimbundo: kibebe, definindo-a como um termo da culinária, “Papa de abóbora”; ou, ainda, “Prato preparado com grelos de aboboreira.” Poré, a aboboreira e seu fruto, a abóbora, é originária do Brasil (ou do continente americano). Já era conhecida, e comida pelos índios muito antes de os brancos (e os negros) aqui aportarem. Tanto é assim que no principal idioma dos índios, o tupi, existe a palavra kibebe, que define um pirão feito de abóbora, ou seja, aquilo que a língua dos brancos (ou a língua dos brancos falada pelos negros) chamou de quibebe. 
Longe deste cronista do sertão, refugiado no litoral da Bahia, a intenção de corrigir o mestre Aurélio. O registro é feito porque ao cronista, pareceu insólito que uma comida feita com um vegetal brasileiro, antes mesmo da chegada dos brancos (que trouxeram os negros), tenha um nome oriundo de um idioma africano...
É preciso também registrar que os grelos ou brotos dos bulbos, rizomas e tubérculos das plantas, em tupi são chamados de geremas, algo assim como embrião. É desta palavra que veio, em português, a palavra jerimum (em tupi: Gerumú), como em alguns estados do nordeste brasileiro são chamadas as abóboras, embora Sampaio (pág. 233, Geografia) registre que “geremum é uma variedade de abóbora grande”. YURÚ-M-UM, o mesmo que “pescoço escuro”. Havendo as alterações de girimun, jurumum. 
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 (1) É comum encontrarmos em enciclopédias a informação de que a banana é originária da Ásia, China, o que é real, porém aqui havia uns tipos de bananas, algumas delas eram comidas pelos índios, como são os casos das Bananas-da-terra e a de São Tomé, que é de cor lilás.
(2) Não possuindo uma culinária muito diversificada, os capixabas têm grande orgulho de dois dos seus pratos típicos: A Torta Capixaba, comida na Semana Santa e a Moqueca Capixaba. Uma propaganda turística alardeava: “Moqueca é capixaba, o resto é peixada”. 
(3) O problema da antropofagia, que causa arrepio na nossa espinha, não é algo assim tão excepcional. Durante a II Grande Guerra, não raro, premido pela fome esse fenômeno ocorreu em várias ocasiões. Nos Andes, na década de 70/80, com a queda de um avião em região gelada, quando todos passageiros eram dados como mortos, foram localizados, muitos meses depois, fortes e sadios. Sobreviveram graças à prática de antropofagia.
(4) Guisado de carne de vaca com vinagre, alho, pimenta, etc, registra o próprio Aurélio.
(5) É possível encontrar até mesmo no Rio de Janeiro, na Feira Nordestina de São Cristóvão carne moqueada. 

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