quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

HUMANITAS Nº 43 – JANEIRO DE 2016 – PÁGINA 7

O valor da ignorância

Júlio César Burdzinski Professor de Filosofia (RS) 
Especial para o Humanitas

Transcrito de www.ateus.net.com

Só sei que nada sei. Esta talvez seja a mais famosa sentença da história da Filosofia. Quem já não a ouviu? E quantos já não a pronunciaram em alguma ocasião? A sentença é originalmente atribuída a Sócrates, o filósofo seminal da Filosofia clássica grega.
Sócrates não registrou em texto seus ensinamentos, mas o mais famoso de seus discípulos, Platão, nos legou uma extensa obra. Esta obra é majoritariamente composta por diálogos. Também estes diálogos têm em Sócrates seu personagem central.
Se os diálogos platônicos estão mais próximos de serem uma exposição literal das palavras de Sócrates, ou uma criação filosófica e literária de Platão, não é importante aqui. O que importa é que Sócrates nos aparece como quem busca o conhecimento, alguém que questiona os supostos sábios sem se considerar sábio.
É a esse caráter ao mesmo tempo crítico e despretensioso de Sócrates que a sentença Só sei que nada sei se refere crítico em relação ao suposto conhecimento alheio; despretensioso em relação ao que ele próprio conhece.
Pois um conhecimento que não se sustenta diante da investigação racional não é de fato um conhecimento. É só algo que se parece com o conhecimento sem de fato o ser. É um pseudoconhecimento. E, como Sócrates não cansa de nos lembrar, o pseudoconhecimento é que nos afasta mais do conhecimento.
Não é preciso buscar aquilo que já temos. Assim, se pensamos ter o conhecimento, também pensamos não precisar buscá-lo.
Daí porque, se estamos iludidos a esse respeito, essa ilusão é o maior bloqueio para a obtenção do conhecimento. É somente na descoberta de nossa própria ignorância, que podemos nos colocar no caminho da busca do conhecimento.
A ignorância — ou, se preferirem, a consciência de nossa própria ignorância — não nos é dada gratuitamente; a ignorância tem um preço. Não a ganhamos, a conquistamos. E com trabalho, com muito trabalho.
Como tudo o mais que tem algum valor na vida, também a obtenção da ignorância exige esforço, paciência e dedicação. Pois ocorre que nos é muito mais natural crer do que duvidar. Parte considerável dos esforços dos filósofos, portanto, é dedicada à tarefa de obter essa autêntica ignorância. Pois a fonte do pseudoconhecimento é a pseudoignorância.
A pseudoignorância é o resultado da tentativa fracassada em eliminar as crenças irracionais que se acumulam em nosso espírito. Diante desse fracasso, continuamos a sustentar ideias infundadas e a guiar nossas ações com base em pontos de vista que não têm sustentação racional.
E tudo isto porque desde o início falhamos na tarefa de desmascarar nossa própria ignorância. Enfim, o valor da ignorância é extraordinário.  Defrontar a autêntica ignorância, único terreno sobre o qual o autêntico conhecimento pode ser erigido, é um empreendimento indispensável e virtualmente interminável.
O mundo nos oferece constantemente ideias enganosas das quais precisamos nos depurar e essa depuração não é um trabalho do qual possamos dar conta sem esforço e método. Ter sempre presente a necessidade deste trabalho e lembrar isso aos demais com uma persistência que beire a provocação - como fazia o próprio Sócrates - pode ser uma boa maneira de se começar a filosofar.

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