O tempo não
passa para a memória
Rafael Rocha é jornalista e editor deste
Humanitas. Atua na cidade
do Recife/PE
Quando eu era mais jovem não entendia o
choro contido da minha mãe ao assistir a um filme, escutar determinada música ou
ao ler um livro.
O que eu não sabia é que minha mãe não
chorava pelas coisas visíveis.
Ela chorava pela eternidade que vivia
dentro dela e que eu, na minha juventude, era incapaz de compreender.
O tempo passou e hoje eu fico emocionado
diante das mesmas coisas. Tudo porque a memória é contrária ao tempo.
Enquanto o tempo leva a vida embora, a
memória traz de volta o que realmente importa.
A memória eterniza momentos.
Crianças e jovens têm o tempo a seu favor e
as memórias deles ainda são recentes. Para eles, um filme é só um filme; uma
melodia, apenas uma melodia.
Ignoram como a infância e a juventude são
cheias de eternidade.
A passagem do tempo nos faz envelhecer,
nossos filhos crescem, e morre muita gente, amigos, parentes. Quanto mais
vivemos, mais eternidades criamos dentro de nós.
Quando nos damos conta, os nossos túneis do
tempo estão repletos daquilo que amamos, daquilo que deixou saudade, daquilo
que doeu além da conta, daquilo que permaneceu além de nós.
A capacidade de se emocionar vem daí: quando
nossos compartimentos são escancarados de alguma maneira.
Um dia, você liga o rádio do carro e toca
uma música qualquer, ninguém nota, mas aquela música já fez parte de você – foi
o fundo musical de um amor, ou a trilha sonora de um período de solidão e de
fossa – e mesmo que tenham se passado anos, sua memória afetiva não obedece a
calendários.
Ela não caminha com as estações.
E então, alguma parte de você volta no
tempo e lembra aquela pessoa, aquele momento, àquela época!
Amigos verdadeiros têm a capacidade de se
eternizar dentro da nossa memória.
É comum ver amigos da juventude se
reencontrando depois de anos – já adultos ou até idosos – e voltando a se
comportar como adolescentes bobos e imaturos.
Encontros de turma são especiais porque
eles resgatam as pessoas que fomos: rapazes e moças cheios de alegria,
engraçados, capazes de atitudes infantis e debiloides, como éramos há 30 ou 40
anos.
Descobrimos que o tempo não passa para a
memória.
Ela eterniza amigos, brincadeiras,
apelidos, mesmo que por fora restem cabelos brancos, artroses, rugas.
A memória não permite que sejamos adultos
perto de nossos pais, pois eles nem percebem que crescemos.
Seremos sempre "as suas crianças", não importa se já temos 30, 40 ou 50
anos.
Para eles a lembrança da casa cheia, das
brigas entre irmãos, das histórias contadas ao cair da noite ainda são coisas
recentes, pois a memória amou e aquilo se eternizou.
Por isso é tão difícil se despedir de um
amor ou de alguém especial que por algum motivo deixou de fazer parte de nossas
vidas.
Dizem que o tempo cura tudo, mas não é tão
simples assim.
O tempo acalma os sentidos, apara arestas,
coloca um anestésico na dor.
Mas aquilo que um dia amamos tem vocação
para emergir das profundezas, romper os cadeados e vir até nós de vez em
quando.
Somos a soma de nossos afetos, e aquilo que
amamos pode ser facilmente reativado por novos gatilhos: o enredo de um filme,
uma música antiga, uma foto, um lugar especial.
Do mesmo modo, somos memórias vivas na vida
de nossos filhos, cônjuges, ex-amores, amigos, irmãos.
E
quando a morte nos levar seremos lembrados eternamente por todos os que aqui
ficarem, por todos aqueles que um dia participaram de nossas vidas.
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