Pessimismo e
realidade (Parte 4)
Divina Scarpim
colaboradora deste Humanitas é professora e escritora.
Atua em São
Paulo/SP
Na página 172 do livro Sapiens lemos que: “Na
Europa medieval, um nobre típico ia à igreja pela manhã e ouvia o sacerdote:
‘Riquezas, luxúria e honra são tentações perigosas. É preciso superá-las e
seguir os passos de Cristo’.” Voltando para casa, o nobre vestia suas
melhores sedas e ia a um banquete no castelo de seu soberano. Lá, o vinho fluía
como água, o menestrel entoava canções sobre Lancelot e Guinevere e os
convidados compartilhavam piadas sujas e narrativas sangrentas de guerra.
“É
preferível morrer a levar uma vida de humilhação. Se alguém questiona sua
honra, só o sangue poderá anular o insulto. E o que pode ser melhor do que ver
nossos inimigos fugindo e ter suas belas filhas estremecendo a nossos pés?”.
Os senhores de engenho também iam à missa
ouvir os mesmos sermões antes de passar no mercado de escravos, antes de mandar
chicotear um negro fujão, antes de estuprar uma escrava mais “ajeitadinha”.
E sua esposa, lembrando o sermão de domingo
e sentindo o “espírito de deus em seu
coração”, ajoelhava-se diante do oratório doméstico e rezava até
sentir-se uma santa. Depois caminhava altivamente para a cozinha a fim de
verificar como andava a preparação da refeição e, se algo não estivesse a seu
gosto, distribuía alguns sopapos, enquanto dizia que negros são mesmo animais
ignorantes que só conseguem fazer alguma coisa “debaixo de pancada.”
Faço três refeições ao dia e durante elas
nunca penso no fato de que muitas pessoas, incluindo crianças, passam fome. Eu
sei e tenho consciência disso, lamento que isso aconteça, mas não faço nada
para que isso deixe de acontecer.
No momento das minhas refeições não penso
nelas porque – é o que digo a mim mesma – se o fizer vou me sentir mal, porque
sei que meu salário de professora não seria suficiente sequer para alimentar as
crianças que vi jogadas pelas ruas de Copacabana, e menos ainda para alimentar
as pessoas que passam fome ao redor do mundo.
E essa é uma verdade que eu poderia usar
para me justificar cada vez que entro em minha casa, compro uma roupa nova, vou
a um restaurante, sou atendida por um médico do meu convênio, que viajo nas
férias e em muitos outros momentos em que estou usufruindo de algo que é total
ou parcialmente interditado a muitas pessoas.
Posso usar essa verdade como justificativa
para todos os meus privilégios porque ela é uma verdade, meu salário de
professora realmente não é suficiente para que eu possa dar a todas as pessoas
do mundo o mesmo tipo de vida minimamente digna que tenho.
Mas se tanta gente não tem sequer o
suficiente para levar uma vida minimamente digna, por que aceito morar,
trabalhar, me divertir, viver, fazer parte de uma sociedade que permite e
tolera que pessoas vivam com fome e morram sem dignidade?
Consigo, porque sou egoísta e má. Porque
lamento, mas não faço nada para mudar uma realidade que me incomoda, porque
lamento, mas consigo viver, consigo sorrir, consigo ser feliz e até mesmo me
sentir grata à minha sorte quase da mesma forma que outras pessoas que fazem
exatamente o que faço conseguem agradecer a um deus.
Eu, do alto da minha racionalidade
briguenta e teimosa, chego a perceber a contradição dessas pessoas que
agradecem pelo que têm a um deus que acreditam ser todo poderoso e esquecem de
culpar esse deus por não ter dado a todas as pessoas do mundo essas mesmas
razões para agradecer.
Critico as pessoas que aceitam que um deus
todo poderoso deixe crianças morrerem de fome, desde que dê a essas pessoas
aquilo que têm ou que pedem em oração. Mas quem sou eu para me julgar melhor do
que elas?
Outra boa justificativa muito verdadeira
que posso usar para minha maldade e meu egoísmo é que, se não agisse dessa
forma, se não esquecesse as crianças famintas quando estou diante de uma bela
fatia de pizza, se não esquecesse as pessoas doentes e abandonadas quando
converso, sorrio e sou feliz com meus entes queridos, se não conseguisse
abstrair da minha mente todo o mal que atinge milhões de pessoas eu não
conseguiria viver.
É fato, sou um animal humano e meus
instintos de animal humano me impõem esse egoísmo, essa propensão a cuidar
primeiro de mim mesma e das pessoas que amo e só depois, se me lembrar, se
tiver tempo, se sobrar recursos, pensar em fazer alguma coisa por alguém que
sofre. Mas sou também o animal que pensa, o animal que raciocina, pondera, cria
linguagens, mitos, conceitos e verdades.
E um dos mitos que crio é o de que sou uma
pessoa boa e decente porque vivo minha vida sem causar mal a ninguém e procuro
ajudar as pessoas sempre que posso. Esse mito camufla o meu egoísmo atávico e a
maldade que é minha e que virá à tona se eu permitir ou se for de colocada
diante de uma situação na qual meu instinto tiver que gritar mais alto.
No livro 1984, de George Orwell, o personagem Winston tenta lutar
contra o sistema, tem conhecimento da opressão em que vive e ama Suzanna, mas
quando é torturado por O’Brien chega àquele ponto em que todas as suas
resistências são quebradas e, sem mentira, fingimento ou revolta, deseja que
toda a dor seja transferida para Suzanna, vê o que O’Brien quer que ele veja e
adora o Grande Irmão.
Winston é um animal humano como eu, e muito
provavelmente eu também tenho um ponto em que me entregaria totalmente como ele
fez e, para mim, isso não mostra apenas minha fraqueza, mostra principalmente
meu egoísmo e minha maldade.
E
me desculpe ser assim tão direta, mas penso da mesma forma a respeito de você.
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