quarta-feira, 2 de outubro de 2019

HUMANITAS Nº 88 – OUTUBRO DE 2019 – PÁGINA 6

Pessimismo e realidade (Parte 5)
Divina Scarpim colaboradora deste Humanitas é professora e escritora. Atua em São Paulo/SP

Como grupo, o ser humano é um animal nocivo e predador que divide a própria raça em grupos denominados "nós" e "eles", sendo "eles" sempre aqueles a serem inferiorizados, subjugados e eliminados.
Enquanto houver essa divisão - e não vejo nenhum indício de que um dia ela deixará de existir - continuaremos sendo o animal que mata, tortura, extermina, aniquila.
Por mais que a gente queira pensar de forma mais "bonitinha" e achar que somos "legais", a verdade é que somos tão terríveis que a história de toda comunidade humana está plantada sobre a aniquilação completa ou parcial de outra comunidade humana e, se não tiver razão para o ódio, a gente inventa uma. É isso que somos... humanos.
Como indivíduo sempre tem os que são pacíficos - se viverem em condições tais que permitam sobrevivência sem luta – mas, como raça, somos mais irracionais do que racionais, ou melhor, usamos a racionalidade mais para matar do que para salvar.
Na história das civilizações não houve período de paz. Investimos mais na fabricação de armas do que na de remédios, e mesmo quando fabricamos remédios o fazemos mais por ambição do que por interesse em salvar vidas.
Justificamos assassinato, tortura, preconceito usando invenções confortáveis chamadas religião, pátria e propriedade.
Como disse George Carlin e como demonstrou Saramago: Para nossa civilização tão “comportadinha" voltar à barbárie, basta apagar a luz.
Há os que defendem as crenças como solução contra todos os males, mas não acho que isso seja sempre positivo. Não mesmo!
As três maiores religiões do planeta têm cada uma delas uma história de horror que é responsável pelo fato de terem se tornado tão grandes.
E o que é válido para religião, é válido para outras crenças também.
A política, o esporte, a família, a economia.
Nossas crenças estão sempre entremeadas pelo "nós" - melhores, superiores, merecedores, eleitos - e o "eles" - inferiores, indignos, subjugáveis, indesejáveis, assassináveis.
Tem crença positiva? Sim, com certeza!
Mas essas são em geral bastante menos efetivas, menos gerais, mais frágeis e facilmente "porosas" às justificativas que conseguimos encontrar para agirmos de acordo com as crenças mais danosas.
Uma pessoa pode acreditar sinceramente que somos todos iguais, que todos os seres humanos têm alma e podem alcançar o "reino de deus", seja qual for esse deus, mas pode, ao mesmo tempo, acreditar que os homossexuais são aberrações e culpados pelas agressões que sofrem; que estrangeiros devem ficar em seus lugares, não importa quanto esses lugares tenham se tornado perigosos; que matar um adolescente que pulou um muro com um tiro certeiro é algo perfeitamente válido e até louvável.
As exceções, que queremos que existam e às quais queremos e temos a pretensão de pertencer, não são insignificantes muito menos destituídas de importância, mas são, em geral, perdedoras.
E são perdedoras porque lutam contra o que é padrão e o padrão é apelar para todo e qualquer artifício, por mais injusto, danoso e desonesto que seja, porque tudo nós podemos justificar com incoerências e artimanhas egoisticamente elaboradas.
Para isso nossa racionalidade funciona maravilhosamente bem! O ser humano é capaz de coisas lindas sim, mas é bem mais capaz ainda de coisas horríveis.
As guerras, os genocídios, as organizações criminosas travestidas de igrejas e nações, a história toda com seus rios de sangue que nunca pararam de jorrar mostram sempre que não somos uma raça da qual uma pessoa que faça parte dessa minoria perdedora possa se orgulhar.
E ter consciência dos fatos pode ser bom: conhecer o inimigo, nesse caso, é conhecer a si próprio.
Sinto certa vergonha de me colocar como uma espécie de exceção.
Tenho consciência de que devo estar sendo prepotente em vários aspectos sobre os quais sequer tenho consciência.
Sou professora e continuo lutando, não desisto e ainda tenho esperança de, pelo menos, ajudar a fazer com que a quantidade de exceções não diminua muito.
Acho essa luta muito válida e necessária. Mas o fato é que não me deixo enganar, sei que somos animais e animais terríveis. 
Pode parecer contraditório o que estou dizendo, mas é justamente essa consciência da nossa animalidade que me dá força e vontade de continuar, e que, principalmente, me torna alerta para não permitir que esse lado animalesco determine minhas ações.

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