sexta-feira, 31 de agosto de 2018

HUMANITAS Nº 75– SETEMBRO DE 2018 – PÁGINA 5


O ÓDIO ESTÁ LIBERADO
Anna Gicelle Garcia Alaniz é doutora em História. Atua em Campinas/SP

Atenção: texto com alta concentração de ironia e sarcasmo
(só avisando)
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Aleluia! Não precisamos mais nos preocupar com boas maneiras, gentileza, consideração, civilidade ou respeito aos sentimentos alheios. O ódio está liberado e embarcamos em uma nova etapa da viagem humana rumo à aniquilação.
Que alegria poder trombar em alguém na rua e, não apenas não pedir desculpas, mas ainda berrar impropérios e culpar um desconhecido por um erro que é nosso. Dirigindo carro então, que maravilha, levantar o dedo para quem questiona nossa direção imprudente, soltar a buzina em cima de quem está devagar e atrapalha nossa pressa e assustar pedestres acelerando quando estão atravessando a rua. Nunca mais o estresse insuportável de ser educado e polido.
Dia de jogo, que beleza, nada melhor que soltar meia dúzia de rojões na porta do vizinho, mesmo sabendo que ali vive um idoso inválido ou um bebê recém-nascido. O que importa? O mais importante é festejar nosso time e humilhar o adversário.
Se precisar “sair na porrada” com o adversário, nada melhor do que “ir de turma”, de preferência totalmente alucinados, embriagados com a falsa coragem produzida por álcool e outras substâncias, que suplantam o cérebro e o caráter quando necessário. Afinal, quem mandou não ser “um de nós”? Todo mundo tem a obrigação de tomar conhecimento da nossa existência e vamos providenciar isso da maneira mais ensurdecedora e ordinária possível.
Festa só é festa se o barulho dos gritos e da “música” se espalhar em um raio de mais de um quilômetro. Para que dar uma festa se ninguém ficar sabendo? A civilidade e a convivência urbana são para “frutinhas”, bom mesmo é incomodar o máximo de gente possível para que todos saibam que estamos vivos.
E a internet? Ah, a internet, paraíso inviolável da grosseria e da vulgaridade… Nada melhor para começar bem um dia que entrar em um portal de notícias e escrever um comentário absolutamente ultrajante em caixa alta. Mesmo sem ter lido o artigo, sem entender nada do assunto e sem necessidade alguma de expressar opinião. Estamos aqui e vão ter que nos engolir!
Uma professora foi espancada? Aí vai um comentário cheio de misoginia, no mais baixo calão imaginável e sem qualquer pudor ou consideração. Quem mandou não ser homem? Tem que apanhar mesmo.
E a esquerdalha? Nada melhor que entrar nos sites, páginas e posts de pessoas que nem se conhece e xingar da maneira mais ordinária, ameaçando com violência e morte, em nome de deus, da pátria e da família. É preciso que essa escória seja eliminada ou reduzida à imobilidade total.
Que maravilha votar naquele vereador ou deputado, homem de verdade, gente de bem, temente a deus, que vai acabar com essa farra de “vitimismo” e direitos humanos e “baixar o cacete” em todos os vagabundos das humanas.
Toda essa gente que lê muito, que se expressa com precisão e domina os assuntos que nem conhecemos deveria ser morta e os livros queimados, as universidades fechadas, para que parem de mostrar como somos ignorantes e estúpidos. Somos maioria e não devemos nos curvar a essas ditaduras intelectuais, eles é que têm que descer ao nosso nível se quiserem ficar vivos. Odiamos autores que não conhecemos, assuntos que não entendemos e pessoas que são diferentes do que consideramos normal.
O mundo deveria ser à nossa imagem porque nós acreditamos em deus e na bíblia (mesmo que jamais tenhamos lido sequer uma linha do que está escrito nela e só conheçamos Jesus através dos filmes) e não queremos que nada mude. O conhecimento nos ameaça e por isso apoiamos qualquer um que queira destruí-lo, mesmo que isso também nos destrua. E se alguém tenta nos convencer a sermos mais tolerantes, nada melhor que berrar a plenos pulmões qualquer besteira para conseguir que a pessoa se cale.
É assim que “refutamos”, berrando e intimidando quem é mais educado, para que saiba quem é que manda. Pena que não mandamos em nada ainda, mas mesmo assim nada se compara a poder alardear nossa superioridade energúmena. A polícia nos apoia. A mídia nos protege.
O “sistema” conta com nosso apoio para combater o comunismo e a civilização.
Imagine quando as armas forem liberadas e cada um de nós pudermos defender nossos argumentos descarregando um “tresoitão” em cima dos subumanos que não pensam e nem vivem como deveriam…
Será um sonho realizado!
Armas e comprimidos azuis ilimitados em um mundo regido e abençoado por deus, em que as mulheres conheçam seu lugar e a caça às bichas, aos pretos e aos comunas seja liberada. Nunca mais ser chamado de “coxinha” por ser orgulhosamente de direita.
Nunca mais ser confrontado com a própria ignorância por pessoas que entendem de verdade sobre economia, política, história, geografia e arte. Nunca mais ser ameaçado por mulheres com capacidade superior nos empregos, nas escolas ou nas ruas.
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