O ÓDIO
ESTÁ LIBERADO
Anna Gicelle
Garcia Alaniz é doutora em História. Atua em Campinas/SP
Atenção:
texto com alta concentração de ironia e sarcasmo
(só
avisando)
*******
Aleluia! Não precisamos mais nos preocupar
com boas maneiras, gentileza, consideração, civilidade ou respeito aos
sentimentos alheios. O ódio está liberado e embarcamos em uma nova etapa da
viagem humana rumo à aniquilação.
Que alegria poder trombar em alguém na rua
e, não apenas não pedir desculpas, mas ainda berrar impropérios e culpar um
desconhecido por um erro que é nosso. Dirigindo carro então, que maravilha,
levantar o dedo para quem questiona nossa direção imprudente, soltar a buzina
em cima de quem está devagar e atrapalha nossa pressa e assustar pedestres
acelerando quando estão atravessando a rua. Nunca mais o estresse insuportável
de ser educado e polido.
Dia de jogo, que beleza, nada melhor que
soltar meia dúzia de rojões na porta do vizinho, mesmo sabendo que ali vive um
idoso inválido ou um bebê recém-nascido. O que importa? O mais importante é
festejar nosso time e humilhar o adversário.
Se precisar “sair na porrada” com o
adversário, nada melhor do que “ir de turma”, de preferência totalmente
alucinados, embriagados com a falsa coragem produzida por álcool e outras
substâncias, que suplantam o cérebro e o caráter quando necessário. Afinal,
quem mandou não ser “um de nós”? Todo mundo tem a obrigação de tomar
conhecimento da nossa existência e vamos providenciar isso da maneira mais
ensurdecedora e ordinária possível.
Festa só é festa se o barulho dos gritos e
da “música” se espalhar em um raio de mais de um quilômetro. Para que
dar uma festa se ninguém ficar sabendo? A civilidade e a convivência urbana são
para “frutinhas”, bom mesmo é incomodar o máximo de gente possível para
que todos saibam que estamos vivos.
E a internet? Ah, a internet, paraíso
inviolável da grosseria e da vulgaridade… Nada melhor para começar bem um dia
que entrar em um portal de notícias e escrever um comentário absolutamente
ultrajante em caixa alta. Mesmo sem ter lido o artigo, sem entender nada do
assunto e sem necessidade alguma de expressar opinião. Estamos aqui e vão ter
que nos engolir!
Uma professora foi espancada? Aí vai um
comentário cheio de misoginia, no mais baixo calão imaginável e sem qualquer
pudor ou consideração. Quem mandou não ser homem? Tem que apanhar mesmo.
E a esquerdalha? Nada melhor que entrar nos
sites, páginas e posts de pessoas que nem se conhece e xingar da maneira mais
ordinária, ameaçando com violência e morte, em nome de deus, da pátria e da
família. É preciso que essa escória seja eliminada ou reduzida à imobilidade
total.
Que maravilha votar naquele vereador ou
deputado, homem de verdade, gente de bem, temente a deus, que vai acabar com
essa farra de “vitimismo” e direitos humanos e “baixar o cacete”
em todos os vagabundos das humanas.
Toda essa gente que lê muito, que se
expressa com precisão e domina os assuntos que nem conhecemos deveria ser morta
e os livros queimados, as universidades fechadas, para que parem de mostrar
como somos ignorantes e estúpidos. Somos maioria e não devemos nos curvar a
essas ditaduras intelectuais, eles é que têm que descer ao nosso nível se
quiserem ficar vivos. Odiamos autores que não conhecemos, assuntos que não
entendemos e pessoas que são diferentes do que consideramos normal.
O mundo deveria ser à nossa imagem porque
nós acreditamos em deus e na bíblia (mesmo que jamais tenhamos lido sequer uma
linha do que está escrito nela e só conheçamos Jesus através dos filmes) e não
queremos que nada mude. O conhecimento nos ameaça e por isso apoiamos qualquer
um que queira destruí-lo, mesmo que isso também nos destrua. E se alguém tenta
nos convencer a sermos mais tolerantes, nada melhor que berrar a plenos pulmões
qualquer besteira para conseguir que a pessoa se cale.
É assim que “refutamos”, berrando e
intimidando quem é mais educado, para que saiba quem é que manda. Pena que não
mandamos em nada ainda, mas mesmo assim nada se compara a poder alardear nossa
superioridade energúmena. A polícia nos apoia. A mídia nos protege.
O “sistema” conta com nosso apoio
para combater o comunismo e a civilização.
Imagine quando as armas forem liberadas e
cada um de nós pudermos defender nossos argumentos descarregando um “tresoitão”
em cima dos subumanos que não pensam e nem vivem como deveriam…
Será um sonho realizado!
Armas e comprimidos azuis ilimitados em um
mundo regido e abençoado por deus, em que as mulheres conheçam seu lugar e a
caça às bichas, aos pretos e aos comunas seja liberada. Nunca mais ser chamado
de “coxinha” por ser orgulhosamente de direita.
Nunca mais ser confrontado com a própria
ignorância por pessoas que entendem de verdade sobre economia, política,
história, geografia e arte. Nunca mais ser ameaçado por mulheres com capacidade
superior nos empregos, nas escolas ou nas ruas.
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