sexta-feira, 31 de agosto de 2018

HUMANITAS Nº 75– SETEMBRO DE 2018 – PÁGINA 6

O SAPATINHO DE BEBÊ
Araken Vaz Galvão é escritor e membro da Academia de Artes do Recôncavo. Atua em Valença/BA

John Steinbeck (1902-1968) não foi um escritor de grandes vôos.
Andou em voga na época de ouro da chamada geração perdida estadunidense – embora não fosse membro nato dela – foi muito incensado pelos meios de comunicação do seu país (e do nosso, por macaquice congênita), chegou mesmo a ganhar o prêmio Nobel de Literatura em 1962 – essa espécie de Oscar, hoje bastante desacreditado – embora seu valor literário fosse muito limitado.
Se não fora o poder do PIB dos Estados Unidos não teria saído do âmbito do seu país e, muito menos, recebido o galardão que recebeu.
Só alcançou um determinado realce literário em três ocasiões: quando se voltou para o sofrimento do seu povo, no momento crucial em que o sacrossanto capitalismo – do qual ele era um acérrimo defensor – entrou no campo, abocanhando as pequenas propriedades agrícolas, expulsando milhares de famílias que sobreviviam daquilo que chamamos hoje no Brasil de agricultura familiar.
Com esse tema, a defesa dos “sem-terra” de lá, que foi retratado no romance “As Vinhas da Ira”, uma vigorosa obra de denúncia, cujo final é dos mais belos – se não o mais belo – da literatura dos Estados Unidos.
Outro momento de brilho foi graças à adaptação de seu segundo romance mais festejado, “A Leste do Paraíso”, uma parábola bíblica sobre o conflito de dois irmãos (Caim e Abel?), que foi levada ao cinema por Elia Kazan, em 1955, que no Brasil recebeu o título de “Vidas Amargas”.
No começo de minha vida de leitor, Steinbeck foi um dos meus autores preferidos. Graças a essa longínqua iniciação, tenho vários de seus livros e ainda encontro beleza em seu romance panfletário (de 1939) “As Vinhas da Ira” e também me divirto com a peculiaridade dos tipos humanos de “A Rua das Ilusões Perdidas” (de 1945), em particular com o personagem que adora barcos e odeia o mar, por isso passa toda a vida construindo um – onde mora com a família –, com o seguro objetivo de nunca terminá-lo para não ser forçado pelos amigos a colocá-lo n’água. Se é verdade que não se pode esquecer completamente de Steinbeck e de sua obra, também não se pode esquecer que, já em plena decadência criativa, começou a condenar, em reportagens que escrevia quando já não tinha fôlego para a literatura, todos os princípios humanistas que defendeu no seu curto auge literário. Foi um dos defensores da guerra contra o Vietnã.
Não é, porém, por essas qualidades (ou defeitos) que desejo falar de Steinbeck, mas por causa da minha neta Clara.
Sua mãe, que esteve uma temporada conosco, vindo do Rio de Janeiro, onde mora, chegou a mim com uma lembrança de despedida, já que voltavam para casa. Resulta que a lembrança era justamente um pé do sapatinho de bebê que eu tinha dado a minha netinha.
Ela explicou-me que o sapato não cabia mais no pezinho da criança, por isso, ia pendurar um dos sapatinhos na haste do espelho retrovisor do seu carro e me pedia que fizesse o mesmo em relação ao outro par. Coisa de mãe, como se vê...
Mas o que Steinbeck tem a ver com isso?
O que o gesto de minha filha trouxe à baila, está no romance “O Destino Viaja de Ônibus”, pág. 18/19 (Ibrasa, São Paulo, 1961), e se refere à descrição do ônibus, no qual “viajava o destino”, onde está escrito:
“(...) O assento do motorista estava tão gasto que se via o contorno das molas do estofamento, mas uma almofada de tecido estampado desempenhava a dupla função de proteger o motorista e esconder as velhas molas”.
“Suspensas no topo do pára-brisa pendiam as mascotes: um sapatinho de bebê – para proteção, pois os pés incertos de um bebê requerem a constante atenção e assistência de Deus; e uma pequenina luva de boxe – para força, potência, segurança no volante, impulso dos pistões para fazer girar o virabrequim, poder da pessoa como indivíduo responsável e orgulhoso”.
“Pendia também do pára-brisa uma bonequinha de cabeleira de penas, envolta em provocante sarong. Isso se destinava ao prazer da carne e da vista, do nariz e dos ouvidos. Quando o ônibus estava em movimento, as três mascotes dançavam e giravam sobre a cabeça do motorista”.
Na ocasião que li o livro – isso já lá se vão mais de 40 anos, o que significava que eu era bastante jovem – fiquei encantado por descobrir o motivo pelo qual as pessoas penduravam sapatinhos de criança nos seus carros.
Quando minha filha fez a proposta, lembrei-me da alusão. Fui à estante peguei do livro, localizei a página, mostrei a minha filha e escrevi esta crônica, a qual dedico a Clarinha, na certeza de que, quando ela tiver discernimento para compreendê-la já não estarei neste mundo lendo e escrevendo livros.

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