segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

HUMANITAS Nº 90 – DEZEMBRO 2019 – PÁGINA 5

INTRODUÇÃO (E ESPECULAÇÕES)
SOBRE A ETERNIDADE
Araken Vaz Galvão é escritor e membro da Academia de Artes do Recôncavo. Atua em Valença/BA

Não faz muito, selecionei quatro livros (“Beira Rio, Beira Vida”, de Assis Brasil, editado em 1965; “Um Belo Domingo”, de Jorge Semprun, editado em 1980; “A Dança Imóvel”, de Manuel Scorza, editado em 1983 e “Respiração Artificial”, de Ricardo Piglia, editado em 1980), afirmando que eles eram os melhores que já tinha lido. Ou, pelo menos, disse que gostaria de tê-los (para a eternidade) ao meu lado na mesa de cabeceira, não só porque já os tinha lido várias vezes – sempre com renovado prazer –, como por desejar lê-los ainda várias vezes mais, durante o pouco de vida que me resta (que me deve restar, a julgar pela minha idade), pois eles eram uma deleite intelectual, pelo modo como aquelas histórias eram narradas – de forma magnificamente fragmentadas, cheias de divagações e com várias idas e vindas (as quais caracterizam minha forma de pensar), ou seja, bem ao meu gosto ou como tenho constatado que a própria vida nós faz vivê-la, levando-nos à situações insólitas ou, como disse o poeta, optar por escolhas ingratas, como dizer: “Prefiro escorregar nos becos lamacentos,/ Redemoinhar aos ventos,/ Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,” ao obrigar-nos a vivê-la de modo tão absurdo (constatada pelo lugar-comum, muito popular, tantas vezes por mim apregoado, insinuando uma fatal aceitação geral pelo povo, pois está sempre a afirmar, de maneira não isenta de tácita resignação e oculto sentido trágico: As voltas que a vida dá...) –, o que me intrigava sobremaneira, além de forçar a muitas reflexões sobre beleza estética e o mistério que esta situação inerente às grandes obras de arte desperta ou revela e até nos impõe. E impõe até mesmo em almas rústicas, não raro, amarguradas, como a minha.
Entretanto, pode ter influenciado na constatação de que aqueles quatros livros eram importantes, porém havia outros e outros, ou mesmo alguns que – no momento particular em que vivia, encantava-me sobremaneira, . Ademais, acabei por concluir que a eternidade era muito tempo, maior mesmo do que o tempo que me caberia viver. Então...
No entanto, não passou muito tempo e aqui estou eu, tentando escrever algo marcante, recorrendo à chamada sabedoria popular. Fizera-a ao colocar o título deste trabalho, faço-o agora ao evocar outra joia desta forma de proceder, além de ser obrigado a reconhecer que os juízos absolutos, além de perigosos, são, amiúde, contrariados de modo muito rápido.
Lendo o livro de Robert Musil, “O Homem sem Qualidades”, mesmo não tendo concluído sua leitura, deparo-me com uma assertiva a qual ainda que feita em outro contexto, levou-me a reflexionar sobre o que dissera em relação àqueles quatro livros. O que o personagem Utrich diz está relacionado a se dar um passo em falso, assegurando que um percalço deste tipo careceria de importância, pois o que importava era a atitude tomada a seguir.
Mais do que pela narrativa fragmentada, encantava-me nele outras razões bem diferentes das aventadas em relação às obras até então preferidas (encantava-me até mesmo pela característica pulverizada pela qual vivi minha vida). Não que elas deixassem de sê-lo. Não. A obra de Musil não tomava seus lugares, apenas me alargara a percepção. Sendo um ficcionista influenciado pela magia do universo mítico do sertão de minha terra – a qual associei e somei com o fantástico, mágico e maravilhoso retratado na literatura hispano-americana do século XX – sendo apenas um contador de história (bom, médio, ruim ou péssimo, é outra questão), teria mesmo que me deixar fascinar completamente, de modo fácil, por aquelas obras que são contadas da forma como as sinto melhor, para emocionar-me.
Comecei a supor que “As Mil e Uma Noites” versava sobre um praticante de assassinatos em série – mais amiúde classificado pela expressão do inglês estadunidense de serial killer –, que é enfrentado por uma mulher, a qual contraria (contrariava) todas as posturas feministas do século XX, por fazê-lo usando tão-somente de sua inteligência, pois tem plena consciência de sua inferioridade física, além da política e social. Afinal, goste-se ou não, ela estava destinada a ser apenas um objeto de prazer sexual e ele era o sultão. Vence-o com a força de sua inteligência, sem ter tido que queimar seu sutiã (o qual, não o usava, pois não tinha sito inventado, como tal), sem passeatas e exigências de leis que, em última análise, buscam obstaculizar o destino final da existência de macho e fêmeas no mundo.
E, tampouco, em imaginar que no contato entre pessoas do mesmo sexo (excluído as possíveis restrições impostas por alterações genéticas) estaria o jeito prático de se por fim a tirania dos homens contra as mulheres. Ao derrotar o sultão fazendo uso apenas de sua inteligência Xerazade teria sido a primeira feminista, despida de todo e qualquer conteúdo de lamentações e autopiedade.
 No entanto “As Mil e Uma Noites” é um clássico e fica óbvio que é consagrado mundialmente, frente ao qual cometo o sacrilégio de fazer esta interpretação, atrevida e extravagante, talvez, afirmando ainda que, na luta travada por sua inteligência contra a força bruta do sultão, Xerazade nos entreteve também (mais a nós, posto ter sido através dos tempos) com narrativas maravilhosas, ficando aquela suposta postura que lhe dei, por minha conta e risco – como diz o populacho (tão evocado neste trabalho) –, para surgir (não) no futuro, como muitas outras devem ter surgido.     
 E já que citei (com muita audácia, talvez até com petulância) uma das obras mais importante do mundo, atrever-me-ei a citar “Dom Quixote de la Mancha”, a magnifica obra de Miguel de Cervantes (1547-1616). Ousando a dizer que o que mais me impressiona neste livro é a ilusão, nascida de uma quimera, indutora de uma loucura a ela associada. Deixa-me pasmo também a sabedoria da ignorância – ignorância no sentido bem sertaneja, ou seja, no sentido de se ser analfabeto, ingênuo e simplório e, de forma inusitada, ser sagaz, matreiro e questionador. 
O restante, que é tudo, assombra-me ainda a fantasia e a manipulação com o ridículo, além do insólito ou do nonsense. Ademais, estava a suceder-me amiúde de gostar de obras que muitos especialistas classificavam como menores (ou não muito importantes ou renovadoras). Gostava, por exemplo, do conto de Aníbal Machado, “Viagem ao seio de Druília”, apesar de ver que pessoas de algo coturno intelectual dizer que aquele conto nada tinha de excepcional, que contribuísse com a arte de contar uma história ou de contribuir para o uso revolucionário da língua portuguesa, na literatura.

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