segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

HUMANITAS Nº 90 – DEZEMBRO 2019 – PÁGINA 6


PESSIMISMO E REALIDADE (PARTE 7)
Divina Scarpim colaboradora deste Humanitas é professora e escritora. Atua em São Paulo/SP
 O egoísmo leva pessoas a serem más, ou a agirem com bondade - ou ilusão de bondade - por ambição, e essa ambição não precisa ser por dinheiro ou poder, pode ser por reconhecimento e simpatia.
Ser um herói ou uma heroína parece algo muito tentador, e um mártir é uma espécie de herói.
Quando sofro e exponho meu sofrimento, estou também chamando a atenção e me tornando mártir-heroína aos olhos da outra pessoa, quem garante que não estou exagerando esse sofrimento, ou mesmo buscando-o para ser vista dessa forma tão especial?
Acho que muita gente faz isso, acho que muita gente fez isso. Acho que os mártires de qualquer religião (elas costumam ter muitos deles), além de alcançar o paraíso ou ter direito a setenta e duas virgens, se tornaram mártires também para serem admirados e louvados pela eternidade.
Acho também que até mesmo inquisidores se tornaram ativos porque o “trabalho terrivelmente sofrido” deles aos seus próprios olhos (afinal, para um homem santo, infringir dor a alguém é um sofrimento atroz, não é mesmo?) era uma espécie de sacrifício que os levaria aos livros de história como mártires da fé.
Madre Tereza de Calcutá é um exemplo recente e bem-sucedido de aparência de bondade egoísta e tremendamente má.
Aposto que, enquanto negava alívio ao sofrimento das pessoas de quem “cuidava”, ela se regozijava por ser, além de merecedora do paraíso cristão, digna da imortalidade dada pela história.
Quando éramos crianças, um de meus irmãos tinha bronquite e tinha crises terríveis que algumas vezes obrigava meus pais a levá-lo ao médico e passava a noite no hospital. Como resultado disso e de já ter perdido uma filha, minha mãe tinha uma enorme preocupação para com esse meu irmão.
Eu e meu outro irmão nos sentíamos negligenciados e, muitas vezes, fingíamos dores e doenças para que nossa mãe desse a nós tanta atenção quanto dava a nosso irmão doente.
A bronquite do meu irmão desapareceu quando ele cresceu e adquiriu mais resistência, mas sempre que me sinto doente, antes de dizer a alguém ou de procurar um médico, dou uma parada, procuro pelo sintoma com atenção e me pergunto: “- Estou doente mesmo ou estou fingindo?”.
Da mesma forma que me vigio para não fingir doença com o objetivo de receber atenção e cuidado do meu marido, preciso checar meus sentimentos, minhas opiniões e minhas ações para saber se não estou agindo por puro egoísmo.
Se não estou escondendo algum desejo ou intenções escusas e inconscientes por trás dessa opinião e dessa ação, preciso me vigiar.
Isso para saber que não estou expressando - ou concordando com - opiniões que na verdade não tenho para que as pessoas pensem que sou uma pessoa boa, nobre ou inteligente.
Como animais sociais que somos, podemos negar à vontade, mas a opinião dos outros a nosso respeito importa sim!
Precisamos trabalhar muito nossa personalidade para que consigamos deixar de valorizar a opinião alheia a ponto de permitir que isso determine nossas ações, mesmo que de forma inconsciente.
Se você não o fizer, pode até mesmo ser levado a praticar atos de maldade, casando o egoísmo e a vontade de agradar com a economia de energia.
Tento ser muito vigilante, evito expor meus problemas, lamentar minhas dores, reclamar da minha vida, fazer confissões muito íntimas para não correr dois riscos ao mesmo tempo: o de estar causando mal à pessoa com quem falo sobrecarregando-a com meus problemas quando ela certamente tem seus próprios problemas com que se preocupar, e o de estar, inconscientemente, procurando atenção, admiração e deferência, de estar fingindo que minhas dores são maiores do que na realidade são apenas para parecer melhor do que realmente sou.
Para mim, o difícil de fazer isso é que nunca tenho uma resposta totalmente confiável porque sei que posso estar “fingindo que não estou fingindo”. 
Eu não sou confiável, acho que nenhum de nós é.

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