Crônica do boteco pobre
Especial para o Humanitas
Rafael Rocha é
escritor, jornalista, poeta e editor-geral deste Humanitas. Mora no Recife/PE
Frequentar botecos é a especialidade de muitas pessoas
que buscam abrigo contra as solidões. Não só contra as solidões, mas
principalmente para variar o rumo da vida, como eu faço, sentir o encanto da
amizade comum e beber... Sim, beber o que for possível beber.
Minha mulher diz que eu só gosto de frequentar “pega-bebuns”. É assim que ela se
refere ao que chamamos de botecos pobres. Mas tais “pega-bebuns” ganham de longe dos bares dos ricaços.
Nesses botecos pobres, é patente a sinceridade da raça
humana entre os clientes homens e mulheres. Todos discutem e todos têm suas
razões nas discussões. Todos cantam as músicas logo que escutam o violão de algum
boêmio ou aquelas vindas de algum pequeno rádio. E, ainda que os cantores
desafinem e fiquem fora do ritmo, eles são intensamente aplaudidos.
Gosto bastante do boteco pobre autêntico, onde em um
repente alguma música de Noel Rosa cantada por Nelson Gonçalves saia pelos
quatro cantos e envolva a rua e a calçada.
Nesses botecos pobres, o proletariado anda em alta e
seus donos são figuras populares e amigos de todos os frequentadores. Não têm dinheiro? Paga depois! Não seja por
isso! Esse é o cartão de crédito desses botecos pobres.
No boteco que eu costumo frequentar desde algum tempo,
a dona proletária é Tereza, mas ninguém usa o nome dela para pedir atendimento.
O apelido dessa proletária soa no pequeno boteco tanto
na suavidade de uma noite de lua, como em um dia de sol ou de chuva: Kiki, ô Kiki! Mais uma cerveja aqui na mesa!
Eu, como bom intelectual, gosto de ser amigo da dona
do bar. Sei que não posso resolver os problemas que assolam o país, mas
enquanto não chega outro amigo intelectual para deitarmos falação, vamos todos
falar de futebol, minha gente!
Nesse boteco e em qualquer outro que eu possa
frequentar sinto-me parte dessa maravilha que é ser brasileiro. E quando a
cerveja gelada refresca minha garganta, sinto-me feliz e livre quando todos
fazem um brinde à felicidade... Evoé,
Baco! Viva a vida!
Botecos pobres, os “pega-bebuns” têm a cara do Brasil muito mais que os bares mais
sofisticados.
Nesses, não podemos usufruir de um caldinho de peixe
bem condimentado e muito menos de um arrumadinho de carne de sol, ou carne de
charque com macaxeira. Nesses bares tudo tem nome afrescalhado como bouillon de
crevettes, viande et de la bière, vin et fromage etc e tal.
Eu, por motivos óbvios, gosto de tripa de boi assada,
caldinho de peixe, queijo coalho com azeitonas e molho inglês e cerveja
estupidamente gelada como acompanhamento.
Botecos, como o da “Kiki”, em Jardim São Paulo,
no Recife, Pernambuco, são altamente democráticos. E é neles que a gente exerce
o direito de falar mal dos políticos, do governo ou sobre os bons e péssimos times
e jogadores de futebol do Brasil e de Pernambuco.
Mas não é tão fácil assim vivenciar um boteco como
este que vivencio. Nem todos podem ter a graça de serem escolhidos como
fregueses. E todos aqueles que resolverem sentar em algumas das cadeiras e em
volta de uma mesa com amigos têm de ter um comportamento de classe, melhor do
que aquele comportamento que têm nos bares mais sofisticados.
Educação em primeiro lugar, ainda que esteja caindo de
bêbado. O boteco é pobre. Pode ser chamado de “pega-bebum”, mas respeito e educação vêm em primeiro lugar.
Na verdade,
a vida é muito mais bem entendida depois de alguns goles de chope e de uma boa
conversa entre amigos.
Apesar de
muitos inimigos dos botecos pobres acreditarem que as discussões ocorridas
nesses locais são improdutivas, de uma coisa todos têm certeza: pelo menos
aconteceu uma discussão e as opiniões foram ouvidas.
Se não
gostaram ou não aceitaram, a questão é outra. O boteco estará sempre aberto
para novos temas. Com cervejas e petiscos. Aproveitem que a vida é curta!
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