quinta-feira, 21 de abril de 2016

HUMANITAS Nº 47 – MAIO DE 2016 – PÁGINA OITO

Crônica do boteco pobre
Especial para o Humanitas
Rafael Rocha é escritor, jornalista, poeta e editor-geral deste Humanitas. Mora no Recife/PE

Frequentar botecos é a especialidade de muitas pessoas que buscam abrigo contra as solidões. Não só contra as solidões, mas principalmente para variar o rumo da vida, como eu faço, sentir o encanto da amizade comum e beber... Sim, beber o que for possível beber.
Minha mulher diz que eu só gosto de frequentar “pega-bebuns”. É assim que ela se refere ao que chamamos de botecos pobres. Mas tais “pega-bebuns” ganham de longe dos bares dos ricaços.
Nesses botecos pobres, é patente a sinceridade da raça humana entre os clientes homens e mulheres. Todos discutem e todos têm suas razões nas discussões. Todos cantam as músicas logo que escutam o violão de algum boêmio ou aquelas vindas de algum pequeno rádio. E, ainda que os cantores desafinem e fiquem fora do ritmo, eles são intensamente aplaudidos.
Gosto bastante do boteco pobre autêntico, onde em um repente alguma música de Noel Rosa cantada por Nelson Gonçalves saia pelos quatro cantos e envolva a rua e a calçada.
Nesses botecos pobres, o proletariado anda em alta e seus donos são figuras populares e amigos de todos os frequentadores. Não têm dinheiro? Paga depois! Não seja por isso! Esse é o cartão de crédito desses botecos pobres.
No boteco que eu costumo frequentar desde algum tempo, a dona proletária é Tereza, mas ninguém usa o nome dela para pedir atendimento.
O apelido dessa proletária soa no pequeno boteco tanto na suavidade de uma noite de lua, como em um dia de sol ou de chuva: Kiki, ô Kiki! Mais uma cerveja aqui na mesa!
Eu, como bom intelectual, gosto de ser amigo da dona do bar. Sei que não posso resolver os problemas que assolam o país, mas enquanto não chega outro amigo intelectual para deitarmos falação, vamos todos falar de futebol, minha gente!
Nesse boteco e em qualquer outro que eu possa frequentar sinto-me parte dessa maravilha que é ser brasileiro. E quando a cerveja gelada refresca minha garganta, sinto-me feliz e livre quando todos fazem um brinde à felicidade... Evoé, Baco! Viva a vida!
Botecos pobres, os “pega-bebuns” têm a cara do Brasil muito mais que os bares mais sofisticados.
Nesses, não podemos usufruir de um caldinho de peixe bem condimentado e muito menos de um arrumadinho de carne de sol, ou carne de charque com macaxeira. Nesses bares tudo tem nome afrescalhado como bouillon de crevettes, viande et de la bière, vin et fromage etc e tal.
Eu, por motivos óbvios, gosto de tripa de boi assada, caldinho de peixe, queijo coalho com azeitonas e molho inglês e cerveja estupidamente gelada como acompanhamento.
Botecos, como o da “Kiki”, em Jardim São Paulo, no Recife, Pernambuco, são altamente democráticos. E é neles que a gente exerce o direito de falar mal dos políticos, do governo ou sobre os bons e péssimos times e jogadores de futebol do Brasil e de Pernambuco.
Mas não é tão fácil assim vivenciar um boteco como este que vivencio. Nem todos podem ter a graça de serem escolhidos como fregueses. E todos aqueles que resolverem sentar em algumas das cadeiras e em volta de uma mesa com amigos têm de ter um comportamento de classe, melhor do que aquele comportamento que têm nos bares mais sofisticados.
Educação em primeiro lugar, ainda que esteja caindo de bêbado. O boteco é pobre. Pode ser chamado de “pega-bebum”, mas respeito e educação vêm em primeiro lugar.
Na verdade, a vida é muito mais bem entendida depois de alguns goles de chope e de uma boa conversa entre amigos.
Apesar de muitos inimigos dos botecos pobres acreditarem que as discussões ocorridas nesses locais são improdutivas, de uma coisa todos têm certeza: pelo menos aconteceu uma discussão e as opiniões foram ouvidas.
Se não gostaram ou não aceitaram, a questão é outra. O boteco estará sempre aberto para novos temas. Com cervejas e petiscos. Aproveitem que a vida é curta!

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