segunda-feira, 2 de outubro de 2017

HUMANITAS Nº 64 – OUTUBRO DE 2017 – PÁGINA 7


Abandono infantil: quem é mesmo o responsável?
Ana Leandro - colaboradora do Humanitas -  é escritora e jornalista. Atua em Belo Horizonte/MG

E então estamos em outubro, o mês das crianças. Muitas delas, favorecidas pela sorte de ter uma família, podem gozar da alegria de receber amor e também presentes. Mas há uma outra triste realidade: existem crianças que não têm mês, nem dia, nem no sentido pleno da palavra vida!
É absurdo, desumano e doloroso o cenário de crianças abandonadas pelas ruas, sozinhas, em grande parte ainda na primeira infância, ou deixadas em orfanatos por ordens judiciais, até que os responsáveis por elas apareçam, ou lhes ofertem a dádiva de uma “adoção”! O que também nem sempre dá certo.
Eis o depoimento de uma criança de sete anos, entrevistada pela jornalista em um orfanato: “Não sei quem é minha mãe nem meu pai. Um homem me pegou ainda neném debaixo de um viaduto chorando e me levou para a casa dele, mandando que a mulher dele cuidasse de mim”.
“Ela já tinha três filhos dele. Comecei a apanhar muito desde que principiei a andar. Mas eu tinha mais medo era do meu pai adotivo. Ele bebia muito e quando chegava tonto, me batia com pau, ferro, fio, de todo jeito. A mulher dele dizia que me odiava, que ela não era minha mãe nem adotiva, pois não tinha sido ela que me pegou na rua”.
“Eu já tinha cinco anos quando uma vez ele bateu tanto nela, que quebrou uma perna dela. Logo depois ele me pôs para fora de casa, mandando que eu sumisse. Eu fui correndo, pois tinha medo que ele me quebrasse também”
“Comecei a dormir debaixo de pontes e marquises. Cheguei a usar também drogas com adultos que depois dormiam comigo”.
“Acostumei. Até que certa vez uns policiais me levaram, junto com um grupo de uns homens que foram presos. Eu vim para esse orfanato. Passou um tempo, a diretora disse que um juiz decidiu que ficarei aqui até que algum casal me adote! Quero não... Tomei medo de pai adotivo”.
Este é um dos milhares de casos semelhantes que existem de entrevistas jornalísticas com crianças que sofreram abandono. Fico imaginando como devem se sentir homens ou mulheres que abandonaram filhos e jamais tomaram conhecimento do destino dos mesmos, diante dessas realidades!
Não pensarão eles, que uma dessas crianças pode ser “exatamente” aquela que não quiseram assumir?
Nos orfanatos, dificilmente aparecem progenitores tentando identificar filhos que geraram num momento de irresponsabilidade, apenas com a finalidade de saciar instintos.
Mas muitas dessas crianças não são órfãs. Ao contrário: a maioria tem pais que as abandonaram. E a incidência maior é do abandono paterno. As mães, em proporções bem maiores, ainda tentam criar os filhos mesmo em situações muito difíceis. Muitas delas, entretanto, diante das dificuldades acabam por optar pela entrega em adoção, ou mesmo ao abandono total.
Em relação ao âmbito masculino é comum se ouvir de homens até de condições “estáveis” na vida, dizerem que sabem quantos filhos possuem com a pessoa com a qual convivem. E completam: “Bom, que eu saiba são estes os meus filhos. Agora lá fora, não posso garantir nada”.
Isso até com certo ar machista sobre sua efetividade sexual, esquecendo-se que seus atos promovem tragédias como a relatada, ou piores... De acordo com dados do UNICEF de novembro/2014 (e esses dados já devem ter evoluído) existem mais de oito milhões de crianças abandonadas no Brasil. Destas, dois milhões estão nas ruas, sem abrigo, comida, dignidade.
É este o filho(a) que alguém pode dizer que tem orgulho de haver gerado?! Enquanto isso, boa parte dos brasileiros que vivem no seio familiar, com muito amor, ignoram a realidade da nossa sociedade.
Questionam apenas o governo por termos crianças abandonadas, que em sua grande maioria se tornam usuários de drogas, ladrões, marginais de todos os tipos. Criticam também as casas de acolhimento público, por não “criarem” essas crianças com perspectiva de futuro.
Pois muito bem, que cada um assuma sua responsabilidade nisso: são pessoas “entre nós”, talvez no nosso convívio, que ajudam a construir essa triste estatística do abandono infantil!
Criticar falta de ética alheia é fácil. Difícil é ter a dignidade de responder por nossos atos na vida, principalmente quando isso inclui a vida do próximo! E um “próximo” que no fundo, é uma parte de “quem o gerou!”

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