quarta-feira, 27 de maio de 2015

JORNAL HUMANITAS Nº 36 – MÊS DE JUNHO DE 2015 –PÁGINA 4

Amputados não devem esperar por milagres

Roelf Cruz Rizzolo – professor de Anatomia Humana
da Unesp-  São Paulo/SP

Um dos desafios da ciência para as próximas décadas será regenerar membros e órgãos amputados ou lesados. Não apenas mãos, braços e pernas, mas rins, coração etc.  Esse tema, curiosamente, além do aspecto científico é um prato cheio para atiçar o debate religioso.
Ora, se os religiosos dizem que Deus intervém operando milagres para remover tumores malignos, fazer cego enxergar, o mar se abrir, mortos ressuscitarem e tantos outros, não haveria motivos lógicos - nem biológicos - para esse deus não promover a regeneração de membros perdidos. 
Mas não importa quantas pessoas peçam, nem quanto elas rezem, nem quão sinceros e devotos sejam; não importa que o amputado seja absolutamente merecedor da graça: o milagre não acontecerá.
E também não importam as palavras da bíblia (e tudo o que pedirdes na oração, crendo, o recebereis - se pedirdes alguma coisa em meu nome, eu o farei). Algumas possibilidades justificariam este fato incontestável. O mais simples deles é que não existe deus algum.
O que a ciência tenta entender hoje é por que os mamíferos adultos perderam a capacidade de regenerar órgãos e membros.
Essa capacidade ainda existe em animais simples como as estrelas-do-mar que regeneram braços e em alguns tipos de salamandras, como os axolotes, que podem regenerar órgãos e membros amputados. 
Mesmo os humanos, em períodos fetais, têm ainda alguma capacidade de regenerar membros. Mas em algum momento da evolução dos mamíferos, cicatrizar uma ferida aberta (evitando assim infecções fatais) passou a ser mais importante que regenerar um membro amputado.
Os cientistas observaram que quando perdemos um dedo, por exemplo, os eventos que levam a cicatrizar rapidamente, inibem os processos que poderiam permitir a regeneração.
Esta corrida da ciência tem, como já ocorreu no passado, a pressão da guerra e seus milhares de amputados e conta também com o inesperado.
Alguns avanços surgiram quase por acaso. É o que aconteceu com um grupo de pesquisadores que estudava o tratamento para o lúpus, uma doença autoimune que acomete milhões de seres humanos.
Para os estudos, eles criaram um rato geneticamente modificado, denominado MRL, capaz de desenvolver a doença. Com isso esperavam compreender seus mecanismos genéticos e tentar novos tratamentos.
Para identificar os animais, eram feitos furos nas orelhas. Furo na orelha esquerda, animal MRL; sem furo, camundongo normal.
Dias depois, quando foram realizar experimentos, observaram que todos os animais estavam sem furo. Crendo tratar-se de um equívoco por parte de algum membro da equipe, repetiram tudo, e, para surpresa geral, em poucos dias os camundongos MRL tinham regenerado de novo a orelha. 
O camundongo MRL não apenas regenerava a orelha, mas partes completas do coração quando artificialmente danificado, e até falanges inteiras de dedos amputados.
Atualmente os cientistas tentam identificar qual a sequência de genes envolvidos no processo, e por que eles estão bloqueados, e o que acontece na área da amputação quando eles são ativados novamente.
Além do camundongo MRL, outro grupo de mamíferos que parece guardar o segredo da regeneração é o dos cervos.
Anualmente repetem um ciclo de formação, amadurecimento e queda dos seus espetaculares chifres. Como essa formação tem semelhança com a formação dos nossos ossos, os cientistas querem saber quais as substâncias químicas que promovem esse crescimento e por que o processo pode se repetir com tamanha velocidade a cada ano.
Tanto no caso dos camundongos MRL como nos cervos, a ação de células-tronco parece jogar um papel fundamental. Os cientistas crêem que se as pesquisas continuarem seguindo o ritmo atual, em dez anos partes de dedos e órgãos internos poderão ser substituídos em humanos, e daqui a 50 anos formar um novo pulmão, rim ou braço poderá fazer parte da rotina médica.
Não deixa de ser irônico que o ex-papa Joseph Ratzinger tenha colocado a manipulação genética entre os novos pecados capitais.
Pelo visto, o chefe máximo dos católicos, na época, considerava que Deus realmente tem algo contra os amputados.

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