O SAPATINHO DE BEBÊ
Araken Vaz
Galvão é escritor e membro da Academia de Artes do Recôncavo. Atua em
Valença/BA
John Steinbeck
(1902-1968) não foi um escritor de grandes vôos.
Andou em voga na
época de ouro da chamada geração perdida estadunidense – embora não fosse membro
nato dela – foi muito incensado pelos meios de comunicação do seu país (e do
nosso, por macaquice congênita), chegou mesmo a ganhar o prêmio Nobel de
Literatura em 1962 – essa espécie de Oscar, hoje bastante desacreditado –
embora seu valor literário fosse muito limitado.
Se não fora o
poder do PIB dos Estados Unidos não teria saído do âmbito do seu país e, muito
menos, recebido o galardão que recebeu.
Só alcançou um
determinado realce literário em três ocasiões: quando se voltou para o
sofrimento do seu povo, no momento crucial em que o sacrossanto capitalismo –
do qual ele era um acérrimo defensor – entrou no campo, abocanhando as pequenas
propriedades agrícolas, expulsando milhares de famílias que sobreviviam daquilo
que chamamos hoje no Brasil de agricultura familiar.
Com esse tema, a
defesa dos “sem-terra” de lá, que foi retratado no romance “As Vinhas da Ira”, uma vigorosa obra de denúncia, cujo final é dos
mais belos – se não o mais belo – da literatura dos Estados Unidos.
Outro momento de
brilho foi graças à adaptação de seu segundo romance mais festejado, “A Leste do Paraíso”, uma parábola
bíblica sobre o conflito de dois irmãos (Caim e Abel?), que foi levada ao
cinema por Elia Kazan, em 1955, que no Brasil recebeu o título de “Vidas Amargas”.
No começo de
minha vida de leitor, Steinbeck foi um dos meus autores preferidos. Graças a
essa longínqua iniciação, tenho vários de seus livros e ainda encontro beleza
em seu romance panfletário (de 1939) “As
Vinhas da Ira” e também me divirto com a peculiaridade dos tipos humanos de
“A Rua das Ilusões Perdidas” (de
1945), em particular com o personagem que adora barcos e odeia o mar, por isso
passa toda a vida construindo um – onde mora com a família –, com o seguro
objetivo de nunca terminá-lo para não ser forçado pelos amigos a colocá-lo
n’água. Se é verdade que não se pode esquecer completamente de Steinbeck e de
sua obra, também não se pode esquecer que, já em plena decadência criativa,
começou a condenar, em reportagens que escrevia quando já não tinha fôlego para
a literatura, todos os princípios humanistas que defendeu no seu curto auge
literário. Foi um dos defensores da guerra contra o Vietnã.
Não é, porém, por
essas qualidades (ou defeitos) que desejo falar de Steinbeck, mas por causa da
minha neta Clara.
Sua mãe, que
esteve uma temporada conosco, vindo do Rio de Janeiro, onde mora, chegou a mim
com uma lembrança de despedida, já que voltavam para casa. Resulta que a
lembrança era justamente um pé do sapatinho de bebê que eu tinha dado a minha
netinha.
Ela explicou-me
que o sapato não cabia mais no pezinho da criança, por isso, ia pendurar um dos
sapatinhos na haste do espelho retrovisor do seu carro e me pedia que fizesse o
mesmo em relação ao outro par. Coisa de mãe, como se vê...
Mas o que Steinbeck
tem a ver com isso?
O que o gesto de
minha filha trouxe à baila, está no romance “O
Destino Viaja de Ônibus”, pág. 18/19 (Ibrasa, São Paulo, 1961), e se refere
à descrição do ônibus, no qual “viajava o
destino”, onde está escrito:
“(...) O assento do motorista estava tão gasto que se via o
contorno das molas do estofamento, mas uma almofada de tecido estampado
desempenhava a dupla função de proteger o motorista e esconder as velhas
molas”.
“Suspensas no topo do pára-brisa pendiam as mascotes: um
sapatinho de bebê – para proteção, pois os pés incertos de um bebê requerem a
constante atenção e assistência de Deus; e uma pequenina luva de boxe – para
força, potência, segurança no volante, impulso dos pistões para fazer girar o
virabrequim, poder da pessoa como indivíduo responsável e orgulhoso”.
“Pendia também do pára-brisa uma bonequinha de cabeleira de
penas, envolta em provocante sarong. Isso se destinava ao prazer da carne e da
vista, do nariz e dos ouvidos. Quando o ônibus estava em movimento, as três
mascotes dançavam e giravam sobre a cabeça do motorista”.
Na ocasião que li
o livro – isso já lá se vão mais de 40 anos, o que significava que eu era
bastante jovem – fiquei encantado por descobrir o motivo pelo qual as pessoas
penduravam sapatinhos de criança nos seus carros.
Quando minha
filha fez a proposta, lembrei-me da alusão. Fui à estante peguei do livro,
localizei a página, mostrei a minha filha e escrevi esta crônica, a qual dedico
a Clarinha, na certeza de que, quando ela tiver discernimento para
compreendê-la já não estarei neste mundo lendo e escrevendo livros.