INTRODUÇÃO (E ESPECULAÇÕES)
SOBRE A ETERNIDADE
Araken Vaz
Galvão é escritor e membro da Academia de Artes do Recôncavo. Atua em
Valença/BA
Não
faz muito, selecionei quatro livros (“Beira
Rio, Beira Vida”, de Assis Brasil, editado em 1965; “Um Belo Domingo”, de Jorge Semprun, editado em 1980; “A Dança Imóvel”, de Manuel Scorza,
editado em 1983 e “Respiração Artificial”,
de Ricardo Piglia, editado em 1980), afirmando que eles eram os melhores que já
tinha lido. Ou, pelo menos, disse que gostaria de tê-los (para a eternidade) ao
meu lado na mesa de cabeceira, não só porque já os tinha lido várias vezes –
sempre com renovado prazer –, como por desejar lê-los ainda várias vezes mais,
durante o pouco de vida que me resta (que me deve restar, a julgar pela minha
idade), pois eles eram uma deleite intelectual, pelo modo como aquelas
histórias eram narradas – de forma magnificamente fragmentadas, cheias de divagações
e com várias idas e vindas (as quais caracterizam minha forma de pensar), ou
seja, bem ao meu gosto ou como tenho constatado que a própria vida nós faz
vivê-la, levando-nos à situações insólitas ou, como disse o poeta, optar por
escolhas ingratas, como dizer: “Prefiro
escorregar nos becos lamacentos,/ Redemoinhar aos ventos,/ Como farrapos,
arrastar os pés sangrentos,” ao obrigar-nos a vivê-la de modo tão absurdo
(constatada pelo lugar-comum, muito popular, tantas vezes por mim apregoado,
insinuando uma fatal aceitação geral pelo povo, pois está sempre a afirmar, de
maneira não isenta de tácita resignação e oculto sentido trágico: As voltas que
a vida dá...) –, o que me intrigava sobremaneira, além de forçar a muitas
reflexões sobre beleza estética e o mistério que esta situação inerente às
grandes obras de arte desperta ou revela e até nos impõe. E impõe até mesmo em
almas rústicas, não raro, amarguradas, como a minha.
Entretanto, pode ter influenciado na
constatação de que aqueles quatros livros eram importantes, porém havia outros
e outros, ou mesmo alguns que – no momento particular em que vivia,
encantava-me sobremaneira, . Ademais, acabei por concluir que a eternidade era
muito tempo, maior mesmo do que o tempo que me caberia viver. Então...
No entanto, não passou muito tempo e aqui
estou eu, tentando escrever algo marcante, recorrendo à chamada sabedoria
popular. Fizera-a ao colocar o título deste trabalho, faço-o agora ao evocar
outra joia desta forma de proceder, além de ser obrigado a reconhecer que os
juízos absolutos, além de perigosos, são, amiúde, contrariados de modo muito
rápido.
Lendo o livro de Robert Musil, “O Homem sem Qualidades”, mesmo não tendo
concluído sua leitura, deparo-me com uma assertiva a qual ainda que feita em
outro contexto, levou-me a reflexionar sobre o que dissera em relação àqueles
quatro livros. O que o personagem Utrich diz está relacionado a se dar um passo
em falso, assegurando que um percalço deste tipo careceria de importância, pois
o que importava era a atitude tomada a seguir.
Mais do que pela narrativa fragmentada,
encantava-me nele outras razões bem diferentes das aventadas em relação às
obras até então preferidas (encantava-me até mesmo pela característica
pulverizada pela qual vivi minha vida). Não que elas deixassem de sê-lo. Não. A
obra de Musil não tomava seus lugares, apenas me alargara a percepção. Sendo um
ficcionista influenciado pela magia do universo mítico do sertão de minha terra
– a qual associei e somei com o fantástico, mágico e maravilhoso retratado na
literatura hispano-americana do século XX – sendo apenas um contador de
história (bom, médio, ruim ou péssimo, é outra questão), teria mesmo que me
deixar fascinar completamente, de modo fácil, por aquelas obras que são
contadas da forma como as sinto melhor, para emocionar-me.
Comecei a supor que “As Mil e Uma Noites” versava sobre um praticante de assassinatos em
série – mais amiúde classificado pela expressão do inglês estadunidense de serial killer –, que é enfrentado por
uma mulher, a qual contraria (contrariava) todas as posturas feministas do
século XX, por fazê-lo usando tão-somente de sua inteligência, pois tem plena
consciência de sua inferioridade física, além da política e social. Afinal,
goste-se ou não, ela estava destinada a ser apenas um objeto de prazer sexual e
ele era o sultão. Vence-o com a força de sua inteligência, sem ter tido que
queimar seu sutiã (o qual, não o usava, pois não tinha sito inventado, como
tal), sem passeatas e exigências de leis que, em última análise, buscam
obstaculizar o destino final da existência de macho e fêmeas no mundo.
E, tampouco, em imaginar que no contato
entre pessoas do mesmo sexo (excluído as possíveis restrições impostas por
alterações genéticas) estaria o jeito prático de se por fim a tirania dos
homens contra as mulheres. Ao derrotar o sultão fazendo uso apenas de sua
inteligência Xerazade teria sido a primeira feminista, despida de todo e
qualquer conteúdo de lamentações e autopiedade.
No
entanto “As Mil e Uma Noites” é um
clássico e fica óbvio que é consagrado mundialmente, frente ao qual cometo o
sacrilégio de fazer esta interpretação, atrevida e extravagante, talvez,
afirmando ainda que, na luta travada por sua inteligência contra a força bruta
do sultão, Xerazade nos entreteve também (mais a nós, posto ter sido através
dos tempos) com narrativas maravilhosas, ficando aquela suposta postura que lhe
dei, por minha conta e risco – como diz o populacho (tão evocado neste
trabalho) –, para surgir (não) no futuro, como muitas outras devem ter surgido.
E já
que citei (com muita audácia, talvez até com petulância) uma das obras mais
importante do mundo, atrever-me-ei a citar “Dom
Quixote de la Mancha”, a magnifica obra de Miguel de Cervantes (1547-1616).
Ousando a dizer que o que mais me impressiona neste livro é a ilusão, nascida
de uma quimera, indutora de uma loucura a ela associada. Deixa-me pasmo também
a sabedoria da ignorância – ignorância no sentido bem sertaneja, ou seja, no
sentido de se ser analfabeto, ingênuo e simplório e, de forma inusitada, ser
sagaz, matreiro e questionador.
O
restante, que é tudo, assombra-me ainda a fantasia e a manipulação com o
ridículo, além do insólito ou do nonsense.
Ademais, estava a suceder-me amiúde de gostar de obras que muitos especialistas
classificavam como menores (ou não muito importantes ou renovadoras). Gostava,
por exemplo, do conto de Aníbal Machado, “Viagem
ao seio de Druília”, apesar de ver que pessoas de algo coturno intelectual
dizer que aquele conto nada tinha de excepcional, que contribuísse com a arte
de contar uma história ou de contribuir para o uso revolucionário da língua
portuguesa, na literatura.