MIRAGEM
Especial para o Humanitas
Araken Vaz
Galvão Sampaio é escritor e membro da Academia de Letras do Recôncavo .
Mora em
Valença/BA
Nestes últimos
tempos, em que passo a maior parte das horas sentado na varanda de minha casa,
suportando a decrépita e cansativa ociosidade da minha velhice, muito tenho
pensado em Teresa. Não aquela saída da pena de Milan Kundera;
melhor, imagino que do teclado mágico do seu computador, mas uma gentil
senhorita que, em silêncio da minha timidez, cheguei a amar – diria mesmo que
até perdidamente, se não fosse a impropriedade da sintaxe corrompida, pelo
lugar-comum – no meu tempo de jovem. E tudo isso sucedeu devido a uma
insistente recordação de Olívia, outro de meus amores da juventude.
Teresa, como a
imaginei, era uma sertaneja morena, cujos lábios lembravam-me a cor rubra de
bonina e sabor do fruto de um cacto de nome popular de facheiro, comum no
sertão, porém não tão conhecido como mandacaru ou o xiquexique, por exemplo.
Seus cabelos, em
longos cachos, caiam sobre os seus ombros largos. Sob a blusa fina de algodão,
seus pequenos e bem formados seios lembravam os cerros relvados da paisagem de
algum país longínquo, visto em um filme já perdido na memória.
Nunca cheguei a
conversar com Teresa, sequer estou seguro se ela realmente existiu ou se ora
estou a idealizar sua existência devido à solidão da velhice ou por confundir
sua imagem etérea com a de Olívia, minha primeira namorada, a da fase de minha
vida, a iniciar-se como adulta.
Teresa ou Olívia (aquela a quem beijei e muitas vezes apertei em meus
braços) recordo-me com muita saudade, nestes últimos tempos, em particular
agora, quando até o esforço de caminhar resulta em algo muito próximo a um
renguear ridículo.
E as lembranças,
mesmo as ditosas implicam em sofrimento.
Ela, pois, ou uma
delas, veio visitar-me aqui neste rincão baiano de Valença, hoje, numa
segunda-feira tediosa e insípida.
Assombrou-me
aquela presença, além de ter-me assustado por tê-la ouvido falar, e o fez em
tom de reproche, acusando-me, de forma implícita, de ser insensível e cruel por
não a ter amado no momento oportuno: aquele em que a reprodução não só é
possível, mas se faz necessária, condenando-a ao mais terrível dos castigos a
que se pode impor uma mulher, negar-lhe (ou impedir-lhe) as revelações da
maternidade.
Vi então que ela
chorava.
- Não chore,
Olívia - disse-lhe.
- O meu nome é
Teresa - contestou-me soluçando - Veja até onde chega a sua insensibilidade,
além de ter me negado a maior ventura a que almeja uma mulher, ainda troca o
meu nome.
Suas palavras
doeram-me como uma chicotada.
Em tudo isso
pensava, embora me sentisse confuso devido ao fato de saber que aquilo era um
sonho, quiçá uma miragem.
Devia estar, por
certo, dormindo. A maior prova, possivelmente, devia ser a cabeça caída sobre o
peito, a respiração ritmada, ainda que ofegante, como é comum aos velhos, e o
compasso com que meu peito arfava, não deixava dúvida de que eu dormia mesmo,
ou encontrava-me próximo daquilo que se convencionou chamar de cochilo
intermitente dos idosos.
Foi então, como
outro sonho nascido do sonho principal, que me veio a certeza de que eu mesmo,
quando jovem (e sonhava ser escritor) costumava dizer que os velhos não
sonhavam - sonhar era inerente aos jovens -, pois aqueles viviam apenas do
passado, revivendo-o em forma de assombração, miragens que os mantinham na
ilusão de estarem todavia vivos.
Descobri que
também eu chorava. Melhor: umas furtivas lágrimas escorriam pelas rugas da
face. Neste momento, creio, minha mulher cobriu-me com um cobertor de lã,
imaginei ela dizer algo como: vai para
a cama, e conclui que ela não viu as minhas lágrimas. Ouvi seus passos
que se afastavam. Um sabiá que mora a maior parte do tempo no jardim de nossa
casa, soltou seu canto mavioso. Abri lentamente os olhos. Olívia ou Teresa
tinha desaparecido, mas isso apenas supus. O que vi foi um beija-flor, que
também habita por ali, adejando frente à corola de uma flor. Sobre o muro, as
lagartixas caminhavam, fazendo rápidas paradas, balançando a cabeça, como se
concordassem com o meu devaneio.
Lembrei-me então
do poeta Fernando Pessoa, mais precisamente dos versos finais do seu poema A
Tabacaria: (...) o universo/
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, (...), no meu caso
específico, era apenas o pequeno mundo que me rodeava que se reconstituía,
também sem esperança.
Enquanto isso o
beija-flor continuava esvoaçando de flor em flor e as lagartixas, sobre o muro,
balançavam afirmativamente as cabeças.