segunda-feira, 27 de julho de 2015

HUMANITAS Nº 38 – EDIÇÃO DE ANIVERSÁRIO – AGOSTO 2015 – PÁGINA 8

MIRAGEM
Especial para o Humanitas

Araken Vaz Galvão Sampaio é escritor e membro da Academia de Letras do Recôncavo .
Mora em Valença/BA

Nestes últimos tempos, em que passo a maior parte das horas sentado na varanda de minha casa, suportando a decrépita e cansativa ociosidade da minha velhice, muito tenho pensado em Teresa. Não aquela saída da pena de Milan Kundera; melhor, imagino que do teclado mágico do seu computador, mas uma gentil senhorita que, em silêncio da minha timidez, cheguei a amar – diria mesmo que até perdidamente, se não fosse a impropriedade da sintaxe corrompida, pelo lugar-comum – no meu tempo de jovem. E tudo isso sucedeu devido a uma insistente recordação de Olívia, outro de meus amores da juventude.
Teresa, como a imaginei, era uma sertaneja morena, cujos lábios lembravam-me a cor rubra de bonina e sabor do fruto de um cacto de nome popular de facheiro, comum no sertão, porém não tão conhecido como mandacaru ou o xiquexique, por exemplo.
Seus cabelos, em longos cachos, caiam sobre os seus ombros largos. Sob a blusa fina de algodão, seus pequenos e bem formados seios lembravam os cerros relvados da paisagem de algum país longínquo, visto em um filme já perdido na memória.
Nunca cheguei a conversar com Teresa, sequer estou seguro se ela realmente existiu ou se ora estou a idealizar sua existência devido à solidão da velhice ou por confundir sua imagem etérea com a de Olívia, minha primeira namorada, a da fase de minha vida, a iniciar-se como adulta.  
Teresa ou Olívia (aquela a quem beijei e muitas vezes apertei em meus braços) recordo-me com muita saudade, nestes últimos tempos, em particular agora, quando até o esforço de caminhar resulta em algo muito próximo a um renguear ridículo.
E as lembranças, mesmo as ditosas implicam em sofrimento.
Ela, pois, ou uma delas, veio visitar-me aqui neste rincão baiano de Valença, hoje, numa segunda-feira tediosa e insípida.
Assombrou-me aquela presença, além de ter-me assustado por tê-la ouvido falar, e o fez em tom de reproche, acusando-me, de forma implícita, de ser insensível e cruel por não a ter amado no momento oportuno: aquele em que a reprodução não só é possível, mas se faz necessária, condenando-a ao mais terrível dos castigos a que se pode impor uma mulher, negar-lhe (ou impedir-lhe) as revelações da maternidade.
Vi então que ela chorava.
- Não chore, Olívia - disse-lhe.
- O meu nome é Teresa - contestou-me soluçando - Veja até onde chega a sua insensibilidade, além de ter me negado a maior ventura a que almeja uma mulher, ainda troca o meu nome.
Suas palavras doeram-me como uma chicotada.
Em tudo isso pensava, embora me sentisse confuso devido ao fato de saber que aquilo era um sonho, quiçá uma miragem.
Devia estar, por certo, dormindo. A maior prova, possivelmente, devia ser a cabeça caída sobre o peito, a respiração ritmada, ainda que ofegante, como é comum aos velhos, e o compasso com que meu peito arfava, não deixava dúvida de que eu dormia mesmo, ou encontrava-me próximo daquilo que se convencionou chamar de cochilo intermitente dos idosos.
Foi então, como outro sonho nascido do sonho principal, que me veio a certeza de que eu mesmo, quando jovem (e sonhava ser escritor) costumava dizer que os velhos não sonhavam - sonhar era inerente aos jovens -, pois aqueles viviam apenas do passado, revivendo-o em forma de assombração, miragens que os mantinham na ilusão de estarem todavia vivos.
Descobri que também eu chorava. Melhor: umas furtivas lágrimas escorriam pelas rugas da face. Neste momento, creio, minha mulher cobriu-me com um cobertor de lã, imaginei ela dizer algo como: vai para a cama, e conclui que ela não viu as minhas lágrimas. Ouvi seus passos que se afastavam. Um sabiá que mora a maior parte do tempo no jardim de nossa casa, soltou seu canto mavioso. Abri lentamente os olhos. Olívia ou Teresa tinha desaparecido, mas isso apenas supus. O que vi foi um beija-flor, que também habita por ali, adejando frente à corola de uma flor. Sobre o muro, as lagartixas caminhavam, fazendo rápidas paradas, balançando a cabeça, como se concordassem com o meu devaneio.
Lembrei-me então do poeta Fernando Pessoa, mais precisamente dos versos finais do seu poema A Tabacaria: (...) o universo/ Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, (...), no meu caso específico, era apenas o pequeno mundo que me rodeava que se reconstituía, também sem esperança.
Enquanto isso o beija-flor continuava esvoaçando de flor em flor e as lagartixas, sobre o muro, balançavam afirmativamente as cabeças.

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