sexta-feira, 8 de março de 2019

HUMANITAS Nº 81 - MARÇO DE 2019 - PÁGINA SEIS

Tarde demais...
Araken Vaz Galvão escritor e membro da Academia de Artes do Recôncavo. Atua em Valença/BA

Ultimamente, tenho-me lembrado mui amiúde de um poema de Mário Quintana, cujo título, se a memória não me trai – coisa que ela me vem fazendo também mui amiúde, nesta curva da minha idade – chama-se “Vida”.
Por já não possuir mais aquela mente prodigiosa em decorar letras de músicas e poemas, raramente me recordo do poema completo, agora, por exemplo, lembro-me apenas dos versos iniciais: “Quando se vê, já são seis horas!/ Quando se vê, já é sexta feira.../ Quando se vê, já terminou o ano.../ quando se vê, passaram-se 50 anos!”. 
Não preciso realçar a amarga ironia que estes versos contém – o que sempre caracterizou a obra de Quintana –, porque o que me preocupa, é a insistência com que – praticamente todos os dias – os versos vêm a minha mente.
Penso neles com uma pertinácia atroz, indiferente ao sacolejo que o carro impõe ao meu velho corpo trafegando pelas ruas de calçamento irregular de paralelepípedos.
Aliás, não deveria estar pensando neles, os versos, e sim, no cheiro quase sufocante das flores. Ou melhor, das consequências que poderão advir, já que sou alérgico a perfumes e seria engraçado se me viesse uma crise de espirros...
Claro que o insólito seria um edema de glote. Já pensou se morro? Outro motivo no qual deveria preocupar-me – eu que sou tão calorento – era com este ar abafado (misturado com o perfume das flores), o qual não me permite respirar livre e pausadamente. colocaram...
Esse ambiente está quase me asfixiando, entretanto, e apesar de todo esse calor, do ar abafado, do olor sufocante das flores, sinto-me frio, quase gelado, mas os versos de Quintana, seu caráter de premonição, não me abandonam. 
“Agora, é tarde demais para ser reprovado.../ Se me fosse dado, um dia, outra oportunidade,/ eu nem olhava o relógio./ Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo/ caminho, a casca dourada e inútil das horas.” 
Não olhar o relógio... Lembro-me que costumava dormir com o relógio no pulso. Não sei se o fazia como um autômato, ou se com algum propósito específico, ainda que oculto.
Não sei. Sei que olhava as horas, mas nunca parava para olhar a vida, vê-la passar de mansinho, de parar para ver um pôr do sol, admirar a luz da lua ou o brilho furtivo das estrelas, deixar o vento bater no meu rosto.
Corria. Apenas corria como desesperado para frente. Atravessava as ruas e avenidas por entre os carros, sem respeitar ou obedecer aos sinais. Driblando ônibus e automóveis, com uma irresponsabilidade arrogante, típica da juventude.
Quanta coisa estúpida não se faz na vida, em particular quando se é jovem... O pior é que só se descobre a inutilidade de tudo quando não se tem mais vigor para fazer nada de útil...
Talvez o melhor fosse dizer que só se tem vigor para ficar no ócio, quando já não se consegue fazer nada. Poderia repetir as palavras de Quintana: 
“(...) Dessa forma eu digo:/ Não deixe de fazer algo que gosta devido à falta/ de tempo, a única falta que terá, será desse tempo/ que infelizmente não voltará mais.” Não voltou para o poeta; não voltará para mim, para ninguém.
Acabaram de me retirar do carro e estão me transportando para algum lugar. Se ao menos eu pudesse abrir os olhos, ver um pouco de luz, sentir a brisa. 
“A brisa que agitava as folhas verdes / fazia ondular as negras tranças”. Onde ficaram perdidos estes versos de Castro Alves?
Onde ficou perdida minha infância?
Meus irmãos, meus avôs, minha mãe, onde estarão?
A fazenda Veneza, o abieiro, a groselheira, o burro Cabrito, onde estarão?
Tomar leite na hora da ordenha, com o calor fumegante do úbere das vacas. Caçar saracuras por entre os lírios-do-brejo, chupar laranja cravo ou caju, comer jaca.
De onde me vêm essas lembranças?
A ingazeira se debruçava por sobre o remanso que o riacho fazia – era a nossa piscina – do alto dos seus galhos pulávamos n’água, para subir e repetir a brincadeira vezes sem conta.
Meu pai morreu muito cedo, quando eu tinha apenas quatro anos – o que é muito cruel, pois quase não me lembro de suas feições, só do afeto que ele nos dedicava.
Mas isso é tão pouco...
Ser amado só não é tudo, é preciso que nos lembremos do brilho nos olhos de quem nos ama, quando nos estão amando.
Minha mãe morreu aos 96 anos...
Agora começo a descer. Será que me colocaram em um elevador? Para onde me levam? Que estranho... Escuto palmas. Por que me aplaudem?
Eu, que durante toda a minha vida tanto desejei ser admirado, de ser – até mesmo discretamente – aplaudido, mas nunca recebi um só gesto de admiração, que só recebi vaias mesmo quando acreditava ser digno de um pequeno afago, sempre vaias, principalmente da vida. Por que tantos aplausos? Por que me dão na morte o que me negaram na vida.
Será que não veem que agora é tarde demais?

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