Ah! Os mamíferos...
Araken Vaz Galvão é escritor e
membro da Academia de Artes do Recôncavo. Atua em Valença/BA
Há alguns dias, um mês se muito, assisti na TV em uma programação que
chamo de “mata tempo” que é, na
verdade, enquanto o tempo nos mata, dois documentários, os quais, se não me
engano, eram da Espanha e do Himalaia, sobre os costumes dos cervos, bem que sobre
esse último minhas dúvidas são bem maiores, inclusive não estou bem seguro se
são mesmo cervos.
Dois fatos, longinquamente relacionados, porém ambos intimamente ligados
à procriação, eram evidentes no momento em que assisti o documentário – meu
objetivo era apenas o de matar o que nos mata, o tempo, não esqueçamos –, não
aguçou meu interesse de modo mais intenso.
Depois de passados uns dias, não sei por qual razão ocorreu-me a quase
constante lembrança sobre o tema e, mais, o insistente relacionamento entre os
dois episódios, sem que conscientemente encontre motivo para essa persistente
relação.
O que havia de mais evidente – e que volta sempre a minha memória – era
o fato de que as fêmeas dos cervos da Espanha tinham como hábito, durante o
período do acasalamento, juntarem-se em um vale, onde as fêmeas ficavam a
sacudir com insistência, e com um esforço evidente, as pequenas caudas,
friccionando-as de modo constante, e com bastante força, como se tivesse a
intenção de disseminar a sua volta o líquido viscoso que lhes escorria das
vaginas.
Estão rendendo tributo à natureza, pensei.
Como costumava dizer, de forma galhofeira, um amigo meu, já falecido (como,
aliás, vem sucedendo a quase todos aqueles que, junto comigo, viram passar o
tempo bom da juventude...), ou seja, estavam espalhando o feromônio”–
retifiquei-me, para sufocar a saudade –, com o objetivo de atrair os machos.
Claro que os machos atendiam pronta e
prazerosamente o apelo e partiam para a disputa, por meio de potentes marradas,
enquanto isso, a fêmea que procedeu daquela forma, passava a ruminar sua relva
fresca, sem se importar com o poder das marradas nem em quem seria o vencedor,
cujo troféu seria elas.
Porém, sabia eu, que aquela indiferença era
apenas fingida, afinal ela era uma fêmea.
O episódio trivial, até certo ponto, ficou
em minha memória e passou àquele recanto voltar, depois de certo tempo, não
muito longo, à minha mente.
A outra passagem do documentário de cunho
similar, que passara – mais ou menos no mesmo período – e que ainda assedia a
minha cachimônia era relacionada também com a reprodução, e tratava-se de
rebanhos que se deslocavam de uma região montanhosa bem alta (creio que no
Tibete), coberta quase sempre de neves, para às margens de um rio, em um lugar
de clima mais ameno, com vista a trazer a luz suas crias.
O curioso desse fato é que não havia
predadores, prontos a devorar alguns daquele sem número de filhotes, salvo uns
abutres imensos, mas que não atacavam, apenas olhavam à distância, jogando com
a sorte, ficavam prudentemente afastados.
Tinha antes se banqueteado com os restos do
parto, mas alimentavam, porém, a agoureira esperança de algum nascimento morto
ou mal formado que, por essa razão fosse abandonado, para servir-lhes de pasto.
Devoravam também, mas sem realizar ataques
acintosos, aqueles filhotes mais curiosos o destemidos que, procuravam
descobrir o mundo, sem imaginar as fatais armadilhas que pudessem encontrar.
Essas suas temerosas incursões eram
acompanhadas por atentos, ávidos e compridos olhos dos abutres. A suceder tal
fato – e o documentarista registrou um deles –, só possível se houvesse
descuido das mamães, as de primeiro parto deviam ser as mais relapsas, o que
não impedia, no entanto, que o instinto se manifestasse repentinamente,
provocando um estalo – como o que se referiu o Padre Antônio Vieira – e
partisse desesperada berrando (ou mugindo, não sei em qual som se enquadra a
voz dos cervídeos) e, ao localizá-lo, parasse, como faria quaisquer mães de
quaisquer espécies, como dando um suspiro profundo, parecendo até murmurar:
Graças ao Deus dos Cervos, meu filho ainda está vivo.
E partir furiosa para o abutre que, sobre
alguma elevação, planejava uma refeição.
Não se contentando com que este voasse,
persistia no ataque até que esse alçasse voo para bem alto e para bem longe.
A cena que se seguia, como não podia deixar
de ser, era – como fazemos na Bahia – de um carinhoso cheiro e da indefectível
mamada.
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