segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

HUMANITAS Nº 30 – DEZEMBRO DE 2014 – PÁGINA 7

A PIOR DAS FOMES
Ana Maria Leandro- Belo Horizonte/MG

Faz algum tempo...
Eu entrava naquela agência de correios atendendo a uma convocação de entrega de um telegrama, que o carteiro havia deixado em minha caixa de postagem residencial. Então percebi a angústia de um senhor. Ele amassava inquieto um envelope entre os dedos das mãos rudes e envelhecidas. Tinha talvez umas sete décadas de vida, mas a expressão era de um envelhecimento marcado por muitas lutas de sobrevivência. Transitava num ir e vir sem destino, entre o balcão e o caixa de expedição, como se quisesse pedir ajuda e não tivesse coragem.
Não resisti e me aproximei perguntando-lhe: “O senhor precisa de alguma ajuda?” Ele me fitou meio embaraçado e respondeu: “Não... quer dizer, sim. Preciso colocar o nome da minha filha neste envelope que acabei de comprar, para enviar esta carta, mas estou sem caneta. A senhora me faz este favor?”
Claro que o problema não era a falta de caneta. No balcão aonde ele chegara inúmeras vezes havia caneta disponível, para uso dos clientes. Sem comentar o fato apressei-me a ajudá-lo. “Perfeitamente. E como é o nome e endereço de sua filha?”, perguntei tirando minha própria caneta fixada na lapela do blazer, para subscritar o envelope, que apoiei sobre minha pasta. Para não constrangê-lo, fiz de conta que eu também não vira a caneta do balcão.
Já com uma expressão aliviada no rosto, ele tirou do bolso um pequeno papel amassado, contendo os dados do destinatário. Dados naturalmente, que alguém anotara para ele, pois o envelope ele acabara de adquirir.  Terminada a tarefa acompanhei-o até a postagem final, para garantir o acerto da expedição.
Depois dos agradecimentos emocionados ele se foi, trôpego, carregando o peso da cegueira do analfabetismo. E eu ali, uma educadora, com o sentimento de que a ajuda que eu prestara era muito pequena, diante da necessidade de resgatá-lo desta escuridão. Deduzi que também a carta dentro do envelope, devia ter sido escrita por outra pessoa. E me peguei sentindo os olhos úmidos e o coração apertado, por um doloroso sentimento de que o débito social, para com grande parte da nossa gente, tem efeitos mais perversos do que imaginamos.
Escrever uma carta, ou pelo menos um bilhete a uma pessoa querida. Assinar o próprio nome, não como um desenho, mas com a sonoridade que ecoa do entendimento de cada letra e se orgulhar de criar uma rubrica especial. Ler jornais ou informar-se das noticias, identificar as placas e sinais. Viajar nos livros, nos poemas e nos textos. Poder fazer seus próprios versos e despejar suas emoções nas linhas. Tudo, tudo isto e muito mais é vedado a milhões de brasileiros
.  Não será esta a pior das fomes? A fome biológica pode até levar à morte. Mas a fome do ler e escrever leva a uma vida sem registros dos pensamentos e das emoções e aliena o homem de sua comunidade. Torna-se assim um viver de sombras...
Aquele senhor talvez tenha resolvido o problema daquele momento. Mas quando chegar a resposta de sua carta, nem o direito à privacidade do conteúdo estará preservado, pois precisará de alguém que a leia para ele. E novamente ao responder, terá de contar a outro seus sentimentos, seus segredos, sua fala, mesmo aquela que gostaria de deixar somente entre ele e a pessoa amada. Tudo porque talvez uma história de luta, não lhe tenha dado a chance de se alfabetizar.
Fome zero, sim. Mas não basta. É preciso lutar pelo analfabetismo zero. É preciso garantir a cidadania a essa gente. Um homem não letrado, não tem condições de lutar pelos seus direitos de cidadania. E não pode, nem mesmo escrever e ler a sua própria historia...
O empresário consciente precisa participar também da fome da extinção total da fome e da miséria, do desenvolvimento humano para encontrar mão de obra qualificada para o trabalho.
Empresas precisam de “gente” e não são pessoas anuladas pela ignorância que podem fazer algo. Essas precisam ser salvas desta escuridão para se tornarem ativos, profissionais que se sustentam honestamente não dependentes do ganho pela marginalidade e pelas drogas. A escolha de pessoas inseridas nesta filosofia é um dos caminhos do cidadão empreendedor, que quer ver o país se tornar a grande nação que tem condições de ser. Que estejamos neste caminho...

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