quarta-feira, 28 de setembro de 2016

HUMANITAS Nº 52 – OUTUBRO 2016 – PÁGINA 7

Criança não pode ser apenas esperança
Especial para o Humanitas
Ana Maria Leandro - uma das principais colaboradoras do Humanitas -  é escritora e jornalista. Atua em Belo Horizonte/MG

Atravesso rapidamente a passarela de transeuntes do viaduto, sob o barulho quase ensurdecedor do trânsito de veículos que correm na pista própria deles. Mas o quase ensurdecimento não me impede de ouvir um choro agudo.
Olho sobre o alambrado o cenário da avenida lá embaixo, mas a visão de debaixo do viaduto não é possível, exceção às suas margens, onde são percebidos resíduos sólidos espalhados.
Embora apressada proponho-me a descer lá embaixo, assim que chegar ao final da passarela, pois não consigo ouvir um choro de criança sem saber se está sob os cuidados de algum responsável, principalmente em lugares evidentemente inadequados.
Ao chegar ao meio da cobertura do viaduto encontro uma senhora deitada sobre um colchão improvisado de trapos, tentando amamentar um bebê que se nega a pegar o peito. Pergunto-lhe se mora ali e ela informa que sim, pelo menos por enquanto. Está foragida de um barraco na favela, de onde fugiu com medo de um marido agressivo.
Mas ela ainda está sangrando do parto. Chamo o SAMU pelo celular e solicito o atendimento de um nascituro e sua gestora ainda em finalização de processo do parto, ambos em condições de risco de vida. Aguardo cerca de 30 minutos e outras pessoas solidárias se aproximam tentando ajudar também e conseguimos que mãe e filho sejam levados para assistência pública adequada.   
Não continuo o relato, pois este não é um artigo sobre ações de solidariedade, ou de assistência social. O tema é Criança não pode ser apenas esperança. Não há futuro num presente que não se constrói.
O Brasil precisa aprender que o circo é, para o povo que o assiste, um momento de lazer, não pode significar uma ilusão de um castelo de areia, pois este se desmorona ao final do espetáculo.
A fase denominada de menoridade tem seu estabelecimento legal, embora controverso na opinião pública. Mas sabemos que o tempo médio de vida se estende em mais de 60 anos além. Pensar que mais de meio século à frente pode ter bases tão frágeis é um contrassenso.
Não vamos entrar na controvérsia sobre a verdadeira e autêntica aplicação desses recursos, visto que o simples marketing do processo já é por si, um enorme ganho para a emissora televisiva que o executa.
Pessoas físicas ou jurídicas de alto poder aquisitivo, artistas de ganhos milionários, talvez colaborassem muito mais ajudando diretamente às crianças de baixo poder aquisitivo, contribuindo na manutenção de instituições educacionais da primeira infância, e colaborando com órgãos de assistência sociais comprovadamente idôneos.
E mais: atuando econômica e financeiramente para a prevenção e assistência médica, principalmente à primeira infância.
Por que a intermediação da verba deste processo por uma instituição midiática?
Já dizia o grande educador Paulo Freire: É preciso ter esperança, mas ter esperança do verbo esperançar; porque tem gente que tem esperança do verbo esperar. E esperança do verbo esperar não é esperança, é espera. Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir! Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo...
Embora o lazer possa ser considerado uma parte necessária à vida, não se pode pensar que isso possa alicerçar o futuro.
A criança não pode ser esperança, algo que se espera, como diz o educador.  A criança é SER DO HOJE, do agora.
Até mesmo ainda no útero a criança é um SER, cujo ambiente de vida da mãe, a exposição a agressividades, fatores emocionais, ausência de cuidados preventivos e alimentação adequada, já interferem nas possibilidades de qualidade do futuro da criança.
Quando me lembro de um recém-nascido chegando à vida debaixo de um viaduto, pergunto-me que futuro pode estar sendo alicerçado em raízes tão cruéis!

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