O olhar da traição
Especial para o Humanitas
Antonio Carlos
Gomes é médico e um dos mais atuantes colaboradores deste Humanitas.
Mora em Guarujá/SP
No reino
animal, ao qual pertencemos, há duas e apenas duas formas aceitas de combate:
guerra e predação. O predador ataca sua presa, procurando alimentação, ou
cercando-a como fazem os lobos, ou pelas costas como os leões com os grandes
animais do qual se alimentam. Faz parte da sobrevivência do grupo e da espécie.
Entre iguais
a guerra é sempre frontal, o animal que foge e é ferido pelas costas
denomina-se covarde, do mesmo modo que aquele que ataca seus iguais pelas
costas sem ser notado.
O humano em
sua história tem a tradição de, em conchavos, envenenamentos e punhaladas
vencer deslealmente e sem luta seus adversários. A isto damos o nome de
traição. Uma vez bem-sucedida a covardia, o elemento enfrentará dois olhos.
Todos, nesta
sociedade unanimemente chamada de louca, vivemos sobre dupla vigilância. Somos
formados socialmente em nossa infância pelo olhar, olhamos todos e deles
incorporamos valores que nos acompanharão pela vida e nos olham dia e noite,
vigiam nossas ações e nosso repouso. Sempre o olhar interno está presente
estejamos só ou acompanhados.
Por outro
lado, o olhar de cada pessoa que cruza nosso caminho, que comparamos conosco,
mesmo que não se dirija a nós é presente. A roupa que usa, o penteado, o modo
de andar ou a expressão facial olha e compara, não vivemos sem que a sociedade
nos olhe e é exatamente isso que conforma o grupo social.
O traidor
tem que enfrentar esses dois olhos. O interno que o reprova, mesmo que tente
demonstrar que venceu e é superior e também cada pessoa que passa a sua frente.
A
duplicidade lembra a paranoia, onde pelo olhar se projeta a própria angústia e
os próprios medos a outro.
Nessa cópia
de loucura, sente o olhar de reprovação de todos,
independentemente de ser verdadeiro e direto ou falso e dispersivo:
para ele todos os reprovam.
Os dois
olhares passarão a guiar seu novo mundo infrator, o interno que o recrimina sem
parar e o externo que o acusa a cada encontro com humanos. Está instalado o
delírio.
De início
começa a querer eliminar todos os olhares de quem sabe o que ele fez e o acusa.
Os golpes de
estado sempre são seguidos de eliminação dos vencidos por meio da traição. Quer
com sangue, masmorras ou exílio, cada olhar externo tem que ser eliminado.
Tal atitude
não soluciona o problema, o olhar interno continua acusando, alucinando que o
olhar externo de cada pessoa que passa que passa tenha um indicador apontando
como acusador.
Na fase a
seguir, o traidor começa a atacar seus comparsas para eliminar olhos que o
fitam, como se essa solução mágica apagasse o olhar interno que o enlouquece.
Em vão!
A solução
para aplacar os olhares, até agora malograda, volta-se a tentar o
reconhecimento de todos. Qual o reconhecimento que um louco pode ter senão a
guerra?
Inicia-se a
lavagem de sangue, guerra atrás de guerras, mortes onde os campos de batalha
cobrem-se de vermelho, mas os cadáveres continuam a o olhar, já que o olhar
está dentro e não fora.
Se a morte
não pegar antes nosso delirante, por certo o isolamento de qualquer olhar seja
a última e inútil tentativa, pois os olhos internos também estão nas masmorras
onde foi jogado. E o infeliz delira até a morte sentindo-se olhado com
reprovação.
A história
de Napoleão, traindo o proletariado com um golpe de estado, a seguir banhando a
Europa de sangue e morrendo isolado numa ilha, mesmo com o reconhecimento de
ser um grande general como lhe atribuíram, exemplifica a monotonia que
acompanha os traidores.
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