segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

HUMANITAS Nº 56 – FEVEREIRO DE 2017 – PÁGINA 7

O olhar da traição

Especial para o Humanitas

Antonio Carlos Gomes é médico e um dos mais atuantes colaboradores deste Humanitas. Mora em Guarujá/SP

No reino animal, ao qual pertencemos, há duas e apenas duas formas aceitas de combate: guerra e predação. O predador ataca sua presa, procurando alimentação, ou cercando-a como fazem os lobos, ou pelas costas como os leões com os grandes animais do qual se alimentam. Faz parte da sobrevivência do grupo e da espécie.
Entre iguais a guerra é sempre frontal, o animal que foge e é ferido pelas costas denomina-se covarde, do mesmo modo que aquele que ataca seus iguais pelas costas sem ser notado.
O humano em sua história tem a tradição de, em conchavos, envenenamentos e punhaladas vencer deslealmente e sem luta seus adversários. A isto damos o nome de traição. Uma vez bem-sucedida a covardia, o elemento enfrentará dois olhos.
Todos, nesta sociedade unanimemente chamada de louca, vivemos sobre dupla vigilância. Somos formados socialmente em nossa infância pelo olhar, olhamos todos e deles incorporamos valores que nos acompanharão pela vida e nos olham dia e noite, vigiam nossas ações e nosso repouso. Sempre o olhar interno está presente estejamos só ou acompanhados.
Por outro lado, o olhar de cada pessoa que cruza nosso caminho, que comparamos conosco, mesmo que não se dirija a nós é presente. A roupa que usa, o penteado, o modo de andar ou a expressão facial olha e compara, não vivemos sem que a sociedade nos olhe e é exatamente isso que conforma o grupo social.                                  
O traidor tem que enfrentar esses dois olhos. O interno que o reprova, mesmo que tente demonstrar que venceu e é superior e também cada pessoa que passa a sua frente.
A duplicidade lembra a paranoia, onde pelo olhar se projeta a própria angústia e os próprios medos a outro.
Nessa cópia de loucura, sente o olhar de reprovação de todos, independentemente  de ser verdadeiro e direto ou falso e dispersivo: para ele todos os reprovam.
Os dois olhares passarão a guiar seu novo mundo infrator, o interno que o recrimina sem parar e o externo que o acusa a cada encontro com humanos. Está instalado o delírio.
De início começa a querer eliminar todos os olhares de quem sabe o que ele fez e o acusa.
Os golpes de estado sempre são seguidos de eliminação dos vencidos por meio da traição. Quer com sangue, masmorras ou exílio, cada olhar externo tem que ser eliminado.
Tal atitude não soluciona o problema, o olhar interno continua acusando, alucinando que o olhar externo de cada pessoa que passa que passa tenha um indicador apontando como acusador.
Na fase a seguir, o traidor começa a atacar seus comparsas para eliminar olhos que o fitam, como se essa solução mágica apagasse o olhar interno que o enlouquece. Em vão!
A solução para aplacar os olhares, até agora malograda, volta-se a tentar o reconhecimento de todos. Qual o reconhecimento que um louco pode ter senão a guerra?
Inicia-se a lavagem de sangue, guerra atrás de guerras, mortes onde os campos de batalha cobrem-se de vermelho, mas os cadáveres continuam a o olhar, já que o olhar está dentro e não fora.
Se a morte não pegar antes nosso delirante, por certo o isolamento de qualquer olhar seja a última e inútil tentativa, pois os olhos internos também estão nas masmorras onde foi jogado. E o infeliz delira até a morte sentindo-se olhado com reprovação.
A história de Napoleão, traindo o proletariado com um golpe de estado, a seguir banhando a Europa de sangue e morrendo isolado numa ilha, mesmo com o reconhecimento de ser um grande general como lhe atribuíram, exemplifica a monotonia que acompanha os traidores.

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