Abandono infantil: quem é mesmo o
responsável?
Ana Leandro - colaboradora do Humanitas
- é escritora e jornalista. Atua em
Belo Horizonte/MG
E
então
estamos em outubro, o mês das crianças. Muitas delas, favorecidas pela sorte de
ter uma família, podem gozar da alegria de receber amor e também presentes. Mas
há uma outra triste realidade: existem crianças que não têm mês, nem dia, nem
no sentido pleno da palavra vida!
É absurdo,
desumano e doloroso o cenário de crianças abandonadas pelas ruas, sozinhas, em
grande parte ainda na primeira infância, ou deixadas em orfanatos por ordens
judiciais, até que os responsáveis por elas apareçam, ou lhes ofertem a dádiva
de uma “adoção”! O que também nem sempre dá certo.
Eis o
depoimento de uma criança de sete anos, entrevistada pela jornalista em um
orfanato: “Não sei quem é minha mãe nem
meu pai. Um homem me pegou ainda neném debaixo de um viaduto chorando e me
levou para a casa dele, mandando que a mulher dele cuidasse de mim”.
“Ela já tinha três filhos dele. Comecei a apanhar
muito desde que principiei a andar. Mas eu tinha mais medo era do meu pai
adotivo. Ele bebia muito e quando chegava tonto, me batia com pau, ferro, fio,
de todo jeito. A mulher dele dizia que me odiava, que ela não era minha mãe nem
adotiva, pois não tinha sido ela que me pegou na rua”.
“Eu já tinha cinco anos quando uma vez ele bateu tanto
nela, que quebrou uma perna dela. Logo depois ele me pôs para fora de casa,
mandando que eu sumisse. Eu fui correndo, pois tinha medo que ele me quebrasse
também”
“Comecei a dormir debaixo de pontes e marquises.
Cheguei a usar também drogas com adultos que depois dormiam comigo”.
“Acostumei. Até que certa vez uns policiais me
levaram, junto com um grupo de uns homens que foram presos. Eu vim para esse
orfanato. Passou um tempo, a diretora disse que um juiz decidiu que ficarei
aqui até que algum casal me adote! Quero não... Tomei medo de pai adotivo”.
Este é um
dos milhares de casos semelhantes que existem de entrevistas jornalísticas com
crianças que sofreram abandono. Fico imaginando como devem se sentir homens ou
mulheres que abandonaram filhos e jamais tomaram conhecimento do destino dos
mesmos, diante dessas realidades!
Não pensarão
eles, que uma dessas crianças pode ser “exatamente” aquela que não
quiseram assumir?
Nos
orfanatos, dificilmente aparecem progenitores tentando identificar filhos que
geraram num momento de irresponsabilidade, apenas com a finalidade de saciar
instintos.
Mas muitas
dessas crianças não são órfãs. Ao contrário: a maioria tem pais que as
abandonaram. E a incidência maior é do abandono paterno. As mães, em proporções
bem maiores, ainda tentam criar os filhos mesmo em situações muito difíceis.
Muitas delas, entretanto, diante das dificuldades acabam por optar pela entrega
em adoção, ou mesmo ao abandono total.
Em relação ao
âmbito masculino é comum se ouvir de homens até de condições “estáveis” na vida, dizerem que sabem
quantos filhos possuem com a pessoa com a qual convivem. E completam: “Bom, que eu saiba são estes os meus filhos.
Agora lá fora, não posso garantir nada”.
Isso até com
certo ar machista sobre sua efetividade sexual, esquecendo-se que seus atos
promovem tragédias como a relatada, ou piores... De acordo com dados do UNICEF
de novembro/2014 (e esses dados já devem ter evoluído) existem mais de oito
milhões de crianças abandonadas no Brasil. Destas, dois milhões estão nas ruas,
sem abrigo, comida, dignidade.
É este o
filho(a) que alguém pode dizer que tem orgulho de haver gerado?! Enquanto isso,
boa parte dos brasileiros que vivem no seio familiar, com muito amor, ignoram a
realidade da nossa sociedade.
Questionam
apenas o governo por termos crianças abandonadas, que em sua grande maioria se
tornam usuários de drogas, ladrões, marginais de todos os tipos. Criticam
também as casas de acolhimento público, por não “criarem” essas crianças com perspectiva de futuro.
Pois muito
bem, que cada um assuma sua responsabilidade nisso: são pessoas “entre nós”, talvez no nosso convívio,
que ajudam a construir essa triste estatística do abandono infantil!
Criticar
falta de ética alheia é fácil. Difícil é ter a dignidade de responder por
nossos atos na vida, principalmente quando isso inclui a vida do próximo! E um
“próximo” que no fundo, é uma parte de “quem o gerou!”