“Cidadão” armado
Sérgio Alves é professor. Atua na cidade
do Recife/PE
Recentemente
recebi um vídeo, via rede social, de um “cidadão” indignado com um grupo
de manifestantes que bloqueavam com pedras e paus uma via pública, impedindo o
livre trânsito dos veículos que nela trafegavam.
Quem filmou o
vídeo não informava a localidade nem a data do ocorrido. No entanto, após uma
análise mais atenta, tudo me levou a acreditar que foi no entorno da reitoria
da Universidade Federal de PE (UFPE) no dia 1º de maio de 2018. O desfecho quase acabou em tragédia e
assassinato. Tentarei descrever ao caro leitor o vídeo em questão e só então,
farei algumas considerações acerca do fato.
Enquanto apenas
um “cidadão” (tinha por volta de 65 anos de idade ou um pouco mais - não
idoso) que desceu de seu veículo e enfrentou os manifestantes (dez ou mais
pessoas) no sentido de retirar as pedras de seu caminho, uma fila enorme
de veículos se formava a cada minuto atrás do veículo do “cidadão”
indignado.
O motivo da
manifestação não ficou claro – não havia cartazes ou bandeiras. Não entrarei
nesse mérito, mas a intolerância de ambas as partes estava à flor da pele e
chamou a minha atenção.
Como eu disse, o
desfecho quase foi trágico, pois, a cada retirada de uma pedra pelo “cidadão”
eram recolocadas mais dez pelos manifestantes. Isso sem falar nos xingamentos e
palavras insultuosas de ambos os lados.
Uma pedra lançada
por um dos manifestantes que tinha como o alvo a rua, quase acerta o veículo do
“cidadão”. Nesse momento, o “cidadão” alcançou o apogeu de sua
cólera, correu em direção ao seu automóvel e armou-se.
Isso mesmo:
armou-se com um revólver, não sei se era um 38 ou uma pistola. A correria
foi geral, mas o impasse foi resolvido sem vítimas fatais. Conclamo o leitor a
responder às seguintes perguntas:
Por que nossa
sociedade está anestesiada pela violência? Por que a sociedade perdeu a
capacidade de chocar-se diante de fatos como este? Como um grupo de
indivíduos que não se conhecia se torna em um só instante - inimigos quase
mortais, sob o olhar de uma plateia entorpecida e até vibrante?
Penso que, se em
nossos pensamentos existe um vácuo em alguns momentos, acredito que a
banalidade do mal ali se instalou. E cada vez mais, esse vazio é preenchido com
que há de pior no ser humano: a intolerância, o medo, a aspereza, a comoção
equivocada.
O leitor deve ter
percebido que desde o início do artigo, o substantivo masculino cidadão” está
grafado entre aspas. Eu respondo. Será que podemos chamar de “cidadão”,
um sujeito que sai às ruas portando uma arma de fogo? Os eleitores de “Bostanaro” dirão que sim.
E eu pergunto:
será que a sociedade brasileira está preparada para andar armada, seja uma arma
de fogo ou uma arma branca? Quantas pessoas têm preparo e maturidade emocional
para portar uma arma?
Pense, caro
leitor, na infinidade de situações cotidianas em que haveria com certeza
assassinatos em larga escala. Citarei algumas: a aspereza do trânsito; uma
discussão banal entre vizinhos; um mal entendido entre parentes; um furão de
fila num banco etc.
Voltemos ao
vídeo. Não houve vítimas fatais. Estranhamente devo admitir que o “cidadão”
armado mostrou preparo emocional. Não disparou! Seria ele um policial, graduado
ou não? Um juiz? Um segurança particular? Será que esse “cidadão” teria
a mesma atitude se não estivesse portando uma arma de fogo?
Claro que não! A
arma lhe deu o poder em detrimento do diálogo.
A opção pela
guerra armada está em moda. Por que chegamos a esse ponto?
Um outro olhar é
necessário. Um segundo ator faz parte da cena: o “cinegrafista”. Ficou
claro no áudio que o “cinegrafista” torce de forma acintosa pelo “cidadão”.
Sua torcida e alegria chegam ao ápice quando o “cidadão” saca a arma.
Nesse momento, é incrível como ele vibra e deseja sangue no asfalto. Como tomar
partido numa situação delicada, estressante e cheia de rancores como essa?
E quanto aos
manifestantes? Com que direitos tentam impedir a passagem de outros numa via
pública? Será que não haveria outra forma de protesto? Será que esses pensaram
no seu semelhante?
Será que pensaram
naquele que tinha uma consulta médica marcada há meses? E naquele sujeito que
saiu mais cedo de casa, pegou um coletivo e que não poderia faltar no seu
primeiro dia de trabalho? Ou então, naquele que entrou no veículo às pressas
socorrendo para um hospital, um parente ou amigo que estava tendo um AVC? Com
certeza, não pensaram. Pensaram apenas em si mesmos. E, finalmente, analiso os
coadjuvantes: os que assistiam atônitos e anestesiados dentro do conforto de
seu veículo.
Por que não
saíram de sua zona de conforto? Ora, quem lá estava no seu automóvel também era
vítima. Por que não descer do veículo, averiguar a situação e tentar uma
solução pacífica? Por que não usar o poder do diálogo, primeiramente?
A resposta a meu
ver é simples e egoísta: “não é comigo, dane-se!!!”
É. caríssimo
leitor, vemos passivos uma sociedade em decadência. Aquele indivíduo que como
membro de um estado, usufrui de direitos civis e políticos, “garantidos por este” (será?),
desempenhando os deveres que lhes são atribuídos, parece não mais existir. A
onda por cidadãos armados, intolerantes, medrosos na busca de seus direitos, é
crescente.
Há esperança?
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