sábado, 30 de junho de 2018

HUMANITAS Nº 73 – JULHO DE 2018 – PÁGINA 6

Soledad também é igual à saudade
Araken Vaz Galvão é escritor e membro da Academia de Artes do Recôncavo. Atua em Valença/BA

Sem embargo, falando de exílio – esse ferrete que queima ad perpetuam” a alma daqueles que sonharam (sonham?) com um mundo menos injusto – lembrei-me de pessoas as quais nele conheci.
Foram várias.
Mas aqui desejo falar de uma só pessoa. Uma mulher.
Seu nome: Soledad Barret.
Foi o Eduardo Terra diretor da Cinemateca do 3º Mundo e que era o que hoje chamam de promotor cultural quem a levou a minha casa, em Montevidéu.
Morávamos, minha mulher e eu, “en Acevedo Díaz, casi Rivera”.
Nossa filha – Márcia – acabara de nascer.
Terra foi muito previdente. Soledad, mesmo sendo paraguaia, era muito conhecida no Uruguai, nada mais seguro do que hospedá-la na casa de um não uruguaio. Um estrangeiro que, mesmo sendo visado por ser exilado, nada sabia sobre ela.
Ademais, para mim, Soledad foi apresentada com o nome de Alicia, de nacionalidade argentina.
Muito tempo depois, bem mais tarde, quando ela foi assassinada no Nordeste do Brasil, é que soube um pouco quem era Soledad Barret.
Seu pai, um dos mais importantes líderes da esquerda paraguaia – quiçá o mais importante em sua época – viveu muitos anos exilado em Montevidéu.
O Uruguai era um país de situação econômica bastante favorável, logo, podia se dar ao luxo de tolerar uma liberdade a qual nem mesmo os próprios uruguaios sabiam que existia.
Não sei se por suas atividades como estudante, se pelo passado do seu pai ou se, ainda, pelas duas coisas, certa feita Soledad foi sequestrada por um grupo da direita uruguaia em um episódio em que se fez muito rumor, ficando alguns dias em cativeiro privado.
Ao ser libertada tinham-lhe tatuado uma suástica no glúteo.
Nessa época – claro! – eu não estava no Uruguai.
Esta ocorrência, ao que me consta, nunca foi desvendada, embora todos em Montevidéu soubessem de sobejo quais foram os autores daquela infâmia.
Ademais, sabia-se que elementos da polícia estiveram envolvidos no fato.
Tudo isso fazia de Soledad pessoa muito conhecida no Uruguai, ainda que já tivessem passado muitos anos e as modificações em relação ao físico de uma adolescente e o de uma mulher madura – que Soledad já era – fossem evidentes, justificavam a prudência do meu amigo Eduardo Terra.
Falando assim, jamais serei compreendido. Soledad era, já naquela época, uma lenda vida, não só pela importância do seu pai, mais por sua participação política dentro da esquerda paraguaia e de outros países da região. Eu de nada disso sabia.
Sendo natural do norte argentino e chamando-se Alicia, Soledad passou alguns dias em minha casa.
Uma imagem sua, que nunca esqueci – e jamais esquecerei –, foi a dela embalando minha filha, Márcia, recém-nascida, cantando uma canção, quase gutural, em um idioma estranho.
Quanto lhe indaguei sobre a música e o idioma, ela, talvez se traindo pela emoção maternal revelada de forma tão imprevista, disse-me:
– Es una canción de cuna guaraní.
Ao que eu, também emocionado, lhe perguntei:
– Entonces tu sois paraguaya.
Ao que ela, retomando o seu equilíbrio emocional.
– En el norte de Argentina también se habla guaraní.
Fizemos certa amizade. Soube mesmo que ela iria entrar no Brasil para cumprir tarefas revolucionárias e, ademais, encontrar-se com um grande amor que a vida lhe revelara em Cuba. Um brasileiro.
Nunca soube o nome desse amor. Ou melhor, soube mais tarde e de forma dramática, “mejor dicho”, trágica. O famoso “Cabo” Anselmo, era o homem por quem ela estava apaixonada e que participou de sua morte.
Poucas são as pessoas, a julgar pelo silêncio que impera em relação ao seu nome, que a conheceram e privaram de sua companhia no Brasil, até mesmo porque todos os seus companheiros de lutas políticas foram assassinados.
Mas o condenável silêncio que embala sua memória, não me impede de escrever, como o fiz no meu romance, que “[...] descobri, embora tardiamente, que a etimologia também tem suas armadilhas, Soledade e saudade nasceram da mesma raiz: solitade, através do arcaico soidade...”
Ou seja, dizer que só posso concluir que Soledad também é igual à saudade.

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