sábado, 30 de junho de 2018

HUMANITAS Nº 73 – JULHO DE 2018 – PÁGINAS 4 E 5


A DITADURA E O CORPO FEMININO
Anna Gicelle Garcia Alaniz é doutora em História. Atua em Campinas/SP

Nestes tempos de desinformação criminosa, de ignorância crassa e má-fé ignóbil, nunca é demais redimensionar algumas bobagens que é impossível ouvir calado.
Tenho plena consciência de que os jovenzinhos entre treze e trinta anos que andam por aí pedindo intervenção militar, defendendo a ditadura, o assassinato e a tortura, jamais lerão este texto, até porque talvez lhes falte a capacidade cognitiva.
Mas vá lá, este é um registro que precisa ser feito. Em parte porque vem aumentando as afirmações pueris do tipo “meu avô viveu a ditadura e diz que era ótimo, que só morria bandido e que a família era valorizada e se podia brincar na rua porque não havia violência e tudo era respeito”.
Por onde começar?
Talvez dizendo que seu avô provavelmente é “algum velho reaça” que só lembra daquilo que quer ou que a passagem do tempo selecionou as memórias e destruiu qualquer coerência possível.
Nesse sentido, peço desde já desculpas aos autores e autoras de pesquisas acadêmicas nessa área porque este é um texto que contrapõe memórias e eu vou usar as minhas próprias ao invés da literatura especializada.
Não duvido de que existam trabalhos sólidos sobre o tema, mas creio que para o grande público é muito difícil entender nossas metodologias e abordagens e prefiro ser tosca e direta.
O momento da sutileza e da ironia já passou e pessoas que defendem tortura e assassinato merecem ser defrontadas com a verdade nua e crua.
E a verdade é que quando uma ditadura se instaura (seja ela civil, militar ou invasão estrangeira), a primeira baixa não é a estrutura democrática, e sim o corpo feminino.
Essa entidade quase abstrata que obceca padres, pastores, velhotes e adolescentes e que passa a receber uma carga de violência maior em uma sociedade já machista e misógina.
A sanha dos poderes sociais se volta para regulamentar, constranger, torturar e assassinar mulheres com a conivência do silêncio geral.
A maior parte dos exércitos faz vista grossa aos estupros em tempo de guerra.
É muito raro ver um soldado ser punido adequadamente ou meramente disciplinado quando ataca mulheres, é mais fácil que o saque seja punido porque implica em ofensa à propriedade.
Em muitas culturas ao longo da História, o saque e o estupro eram parte do botim dos vencedores.
E isso acontecia e ainda acontece em muitos locais do planeta porque as mulheres ainda somos consideradas como “posses” e não como pessoas ou cidadãs.
Quando uma facção política qualquer toma o poder e impõe uma ditadura, começa-se por legislar arbitrariamente sobre os direitos reprodutivos, obrigando-nos a submeter o controle de nossos corpos ao pensamento religioso que estiver na moda.
Segue-se a perda do direito à vida, quando um feto passa a ser mais importante do que nós e a partir daí está aberta a temporada de caça para a tortura e morte de mulheres com fins políticos ou sem eles.
A recente ditadura brasileira, que se estendeu de 1964 a 1985, é um exemplo desse tipo de comportamento e quem diz o contrário está mentindo descaradamente.
Este não é um texto para falar de Amelinha Teles, Dilma Rousseff, Inês Romeu e outras centenas de mulheres barbaramente seviciadas e torturadas e outro mesmo tanto que depois foram assassinadas.
O objetivo deste texto é deixar claro como era ser uma menina nos anos 70, quando os predadores agiam com o aval e o silêncio do Estado.
Quando uma menina de doze ou treze anos, que ia a pé sozinha à escola ou à padaria, era obrigada a ouvir assovios e palavreado chulo e ordinário ao passar perto de oficinas, bares e construções. E muitas vezes nem tinha coragem de contar aos pais, de medo que dissessem que a culpa era nossa.
Aos que dizem que as crianças podiam brincar nas ruas livremente, eu sempre pergunto: “quais crianças e em quais cidades?”
Em cidades grandes, o trânsito já impedia todo esse bucolismo saudosista, em cidades pequenas, meninos podiam brincar na rua, meninas nem sempre.
Em parte porque às meninas mais pobres ou remediadas já muito cedo era imposta uma cota de trabalho doméstico, em parte porque não era considerado que a rua fosse um local respeitável para o gênero feminino em geral (clara herança do pensamento colonial e patriarcal) e em parte porque todos sabiam que os perigos espreitavam.
Historicamente, meninas pobres sempre foram objeto de recreação para jovens endinheirados e as sociedades silenciaram diante do poder e do dinheiro das famílias importantes. Então, quando alguém lhe disser que na época da ditadura se respeitava a família, convém perguntar: “a família de quem?”
Certamente não era a das meninas sequestradas, abusadas, assassinadas e jogadas em matagais ou valetas.
“Lado a lado com a lista das militantes seviciadas, torturadas e assassinadas pelas “operações táticas” das forças de repressão (que muitos defendem e justificam demonizando essas militantes como terroristas), podemos fazer uma lista muito maior de meninas, jovens e mulheres igualmente barbarizadas e assassinadas por agentes sociais dos mais variados, que desfrutaram da mais absoluta impunidade ao tempo dos militare”.
“Araceli Cabrera Sánchez Crespo, Cláudia Lessin Rodrigues, Ana Lídia Braga, Ângela Diniz” são nomes de vítimas que você pode acessar facilmente hoje através de seu teclado e descobrir o nível de impunidade que o dinheiro dos apoiadores da ditadura conseguia para seus filhos cocainômanos e bêbados.
Outras vítimas jamais alcançaram notoriedade na imprensa e também não conseguiram justiça.
Eu mesma estudei com uma menina em São Paulo, cuja mãe precisara fugir de uma biboca qualquer no interior porque o marido (de família importante e poderosa) bebia sem controle e a espancava até quebrar ossos.
Então não me falem sobre respeito e família durante a ditadura porque isso é muito mais do que hipocrisia.
Não me venham com relatos idílicos de um país com “ordem e progresso” porque essa ordem foi pavimentada com cadáveres de militantes e de anônimas de todas as idades.
E o progresso se baseou na exploração de pessoas como meu pai, que fazia jornadas de doze horas por dia (uma semana de dia e outra de noite) em uma conhecida indústria têxtil, sem jamais receber uma única hora extra e sem sindicato ao qual recorrer.
Porque as ditaduras são assim.
Oferecem todo tipo de benesses para os que as apoiam e para o resto da população resta a perda de direitos e o total desrespeito à vida.
E se isso aconteceu na cara dos seus parentes e eles nem perceberam, talvez você deva se perguntar o porquê.
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Texto extraído de: https://compartilhandohistorias.wordpress.com/2018/05/30/a-ditadura-e-o-corpo-feminino/

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