terça-feira, 2 de abril de 2019

HUMANITAS Nº 82 - ABRIL DE 2019 - PRIMEIRA PÁGINA

A verdadeira saga do mártir da Inconfidência

A saga do alferes Joaquim José da Silva Xavier é retratada pelo jornalista Lucas Figueiredo em seu excelente livro O Tiradentes, após realizar extensa pesquisa sobre os fatos e as ações que cercaram aquele que foi acusado e executado em 21 de abril de 1792, como sendo o líder da Conjuração Mineira. A figura fantasiosa de Tiradentes - com barba e cabelos longos - ficou parecida com o retrato imaginário do suposto filho do deus cristão, o Jesus Cristo.

- PÁGINA 8 –
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Na PÁGINA 4, o escritor Décio Schroeter de Porto Alegre/RS, diz qual foi e quem disse a primeira mentira
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A escritora Divina de Jesus Scarpim, comenta, na PÁGINA 6, a antecipação do êxtase da mulher que vai à igreja
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Leia - na PÁGINA 3 - poemas de Alvarenga Peixoto e Tomaz Antonio Gonzaga
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Na PÁGINA 5, o Especial do Humanitas disserta sobre a diversidade étnica brasileira

HUMANITAS Nº 82 - ABRIL DE 2019 - PÁGINA 2

  EDITORIAL
O DNA de abril

O mês de abril tem um DNA bastante específico.
A História diz que foi neste mês que invasores armados com cruzes e espadas invadiram as terras brasileiras e delas se fizeram donos. E colocaram nos livros que um novo território tinha sido descoberto.
A partir desse mês, os habitantes naturais dessa gleba se tornaram escravos de homens vindos do outro lado do oceano.
Tais homens - ligados a uma monarquia carola - exploraram esse novo espaço e os seus habitantes até o tutano, roubando ouro, diamantes e demais riquezas, distribuindo terras aos nobres de além mar, matando e escravizando os reais donos da terra com uma espada na mão e uma cruz sangrenta na outra.
Realmente, abril tem um DNA especifico e sombrio.
Em abril, o líder da Conjuração Mineira – Tiradentes - foi morto e esquartejado depois de um julgamento tendencioso e viciado como continua acontecendo ainda hoje em nossos tribunais.
Sim, o DNA de abril é aterrador! No dia 17 de abril de 1996, 150 policiais executaram 19 trabalhadores, em Eldorado dos Carajás, tudo porque eles reivindicavam melhores condições de trabalho e terra para plantar.
O DNA de abril mete medo, sim! No dia 1º de abril de 1964 foi inaugurado no Brasil o período mais aterrorizante da sua História.
Sob comando dos militares, fundava-se um governo voltado para os interesses das grandes corporações nacionais e estrangeiras.
Abril tem um DNA colérico!
No dia 16, em 1866, Brasil, Argentina e Uruguai se uniram para destruir econômica e socialmente o Paraguai.
No dia 20, em 1889, nasceu Adolf Hitler.
No dia 26, em 1986, explodiu a central nuclear de Chernobyl. No dia 4, em 1968, foi assassinado Martin Luther King.
Em 15 de abril de 1912, 1.513 pessoas morreram afogadas no naufrágio do Titanic.
Quais novas e coléricas trevas virão para este abril de 2019?
Ainda não sabemos.
O mês – como sempre - é aberto com o Dia da Mentira, que se coaduna bastante com o que os governantes e religiosos pintam e apregoam.
Por ter um DNA bem tendencioso, o mês de abril pode ser considerado o mais sinistro da história brasileira e – talvez – do mundo.

Televisionite
Antonio Carlos Gomes Guarujá/SP
Dona Josefa, uma senhora de seus 50 anos, corpo tendendo a obeso chegou para consulta. Era a primeira vez que me procurava. 
   - Qual sua queixa? - indaguei.
- Não sei se o senhor pode resolver meu problema, acho que não é sua especialidade.
   Numa cidade pequena é comum que o clínico trate apenas casos banais: as tais “viroses”; principalmente o “colesterol”.
Aliás, o paciente trata o colesterol e deixa de tomar o remédio do diabetes e hipertensão que são doenças graves. Minha nova paciente continuou:
- Está me caindo o cabelo.
Normalmente a queda de cabelos é uma queixa mal explicada que inclui ansiedade, tingimentos em demasia, compulsão de lavagens, sendo mais consequência do que doença.
Como a falha não era aparente, pensei até numa queda difusa. Pedi para olhar.
Mostrou-me uma lesão numular, lisa com o couro cabeludo brilhante, de oito centímetros de diâmetro, típico de alopecia areata.
Esta, não é uma doença incomum, tem fator psicológico e é auto-imune.  
A lesão, como a da dona Josefa, é de bom prognóstico, não correndo o risco da perda do cabelo. Basta ir a um dermatologista e fazer os exames. Expliquei a doença e a conduta. Não se acalmou. Começou a falar que a filha tinha notado a falha, que a vizinha confirmou.
Continuou angustiada, relatando todas as testemunhas de sua enfermidade. Confesso que fiquei confuso: uma senhora de meia idade, sem obsessão por beleza física, vestida sem espalhafato, não justificava tanta angústia.
Perguntei-lhe pela vida familiar. Nada incomum. A vida monetária, sem. Não parecia ter nenhum problema psicológico, falava, apesar de ansiosa, com coerência. Conforme decorria minha anamnese, ela perguntou:
- Não vou morrer?
Logo entendi. Era uma “televisionite”. O artista da novela fez quimioterapia, devido a um câncer e ficou careca por causa do tratamento, não pela doença.
Mas no imaginário de dona Josefa, temos: câncer igual careca. Consegui enviá-la mais tranquila ao dermatologista, após o esclarecimento.

HUMANITAS Nº 82 - ABRIL DE 2019 - PÁGINA 3

Refúgio Poético – Cartas dos Leitores – Teste de Xadrez

A lástima

Inácio de Alvarenga Peixoto
(Rio de Janeiro, 1744/Angola, 1793)

(Na masmorra da Ilha das

Cobras,lembrando-se da família)


Eu não lastimo o próximo perigo,

Nem a escura prisão estreita e forte;

Lastimo os caros filhos e a consorte,

A perda irreparável de um amigo.


A prisão não lastimo, outra vez digo,

Nem o ver iminente o duro corte;

É ventura também achar a morte

Quando a vida só serve de castigo.

 

Ah! quão depressa então acabar vira

Este sonho, este enredo, esta quimera,

Que passa por verdade e é mentira.

 

Se filhos e consorte não tivera,

E do amigo as virtudes possuíra,

Só de vida um momento não quisera.


********

Soneto
Tomaz Antonio Gonzaga
(Porto/Portugal/1744
Moçambique, África/ 1810)

Obrei  quanto o discurso me guiava,
Ouvi aos sábios quando errar temia;
Aos bons no gabinete o peito abria,
Na rua a todos como iguais tratava.

Julgando os crimes nunca os votos dava,
Mais duro, ou pio do que a lei pedia:
Mas devendo salvar ao justo ria,
E devendo punir aos réu chorava.

Não foram, Vila Rica, os meus projetos,
Meter em ferro cofre cópia de ouro,
Que farte aos filhos, e que chegue aos netos:

Outras são as fortunas, que me agouro,
Ganhei saudades, adquiri afetos,
Vou fazer destes bens melhor tesouro. 

Rancoroso, ma non troppo
Manoel Herzog (1964...)
Santos/São Paulo

Do nosso amor restou belo monturo:
Garrafa pet, pneu velho, entulho,
Os urubus, pombos do amor, num arrulho
Dançam sobre esta cama, e o barro escuro

Que viraram os sonetos e os "eu juro".
Nosso fubá está cheio de gorgulho,
Pra merda alguma serve o teu orgulho,
Me vejo só na cama, e de pau duro.

Ressentimento, mal-estar, ciúme,
Engulho, lembranças de grandes fodas,
Punheta fria, gozo frio, negrume,

E a depressão que aos versos incomoda.
Meses de fronha suada e barba hirsuta –
Volta pra mim, sua filha duma puta!

CARTAS DOS LEITORES

Só vejo grandes vantagens na leitura do Humanitas.  Uma delas é o prazer de ler  textos e poesias maravilhosas. Outra, e talvez a mais valiosa, é a abordagem  de aspectos dos fatos históricos que a grande mídia nunca terá interesse em divulgar. José Carlos Gomes da Silva – Olinda/PE

HUMANITAS Nº 82 - ABRIL DE 2019 - PÁGINA 4

Qual foi e quem disse a primeira mentira?
Décio Schroeter - Colaborador deste Humanitas é escritor - Atua em
Porto Alegre/RS

Esta é uma pergunta muito usada pelos ateus, céticos e humanistas seculares porque é interessante e sugestiva. Se perguntarmos a um crente medianamente informado sobre o Gênesis e a origem do homem segundo a Bíblia, acredito que depois de pensar um pouco responderia: “A primeira mentira foi dita por Satanás a Eva”, e nesse caso o crente estaria se referindo a Gênesis 3:4-5 (Então a serpente disse à mulher: Certamente não morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se abrirão os vossos olhos, e sereis como Deus, sabendo o bem e o mal...).
Mas essa é a primeira mentira? Não, a primeira mentira está em Gênesis 2:16-17 (E ordenou o Senhor Deus ao homem, dizendo: “De toda a árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás”. Mentira! No dia em que Adão comeu desse fruto não morreu.
A prova está em Gênesis 5:3-5: “E Adão viveu novecentos e trinta anos, e gerou um filho à sua semelhança, conforme a sua imagem, e lhe pôs o nome de Set. E foram os dias de Adão, depois que gerou a Set, oitocentos anos, e gerou filhos e filhas. E foram todos os dias que Adão viveu novecentos e trinta anos, e morreu”. Ou seja, ele viveu muito tempo depois que comeu o fruto da árvore.
Como se pode ver, a primeira mentira foi dita pelo próprio Deus e não por Satanás, como geralmente se costuma crer. Também sabemos que os crentes possuem milhares de desculpas para justificar isso, mas, sejamos sinceros, não é algo muito suspeito?
Segundo Joseph Campbell, mitologista e professor, “metade da população mundial acha que as metáforas das suas tradições religiosas são fatos. A outra metade afirma que não são fatos de forma alguma. O resultado é que temos indivíduos que se consideram fiéis porque aceitam as metáforas como fatos, e outros que se julgam ateus porque acham que as metáforas religiosas são mentiras”.
O poder da mulher e sua capacidade de gerar vida já foi algo sagrado, mas ameaçava a ascensão da Igreja Católica, de predomínio masculino. Assim, o sagrado feminino foi demonizado e considerado impuro. Foi o homem, não Deus, que criou o conceito de “pecado original”, mediante o qual Eva provou da maçã (fruta) e causou a queda da raça humana.
A mulher se tornou uma ramificação do homem. E, ainda por cima, pecaminosa! Os poderosos dos primórdios da Igreja Católica “traíram” o mundo, propagando mentiras que desvalorizam o feminino, fazendo a balança pender para o lado masculino.
Conseguiram converter o mundo do paganismo matriarcal, para “reeducar” no cristianismo patriarcal os adeptos de religiões pagãs e adoradores de deidades femininas, durante três séculos, por meio de uma campanha de demonização do sagrado feminino, eliminando a deusa da religião moderna para sempre.
Tertuliano, um dos Pais da Igreja que desprezou os gnósticos, assim escreveu a um grupo de mulheres cristãs:
“Sois a porta do inferno. Sois aquele que persuadiu aquele que o diabo não ousava atacar... Sabeis que sois cada uma de vós uma Eva? A sentença de Deus sobre o vosso sexo subsiste nesta época; a culpa, necessariamente, subsiste também”. (De cultufeminarum 1.12).
Tradições egípcias mostram paralelos com o relato de Gênesis, em que o homem é formado da terra e Deus dá vida em suas narinas. Mas a influência mais importante sobre o Gênesis foi, provavelmente, o nascimento de Atum. No mito da criação de Heliópolis, que está por trás das histórias de Adão e Eva, o primeiro ser era Atum, cujo nome é foneticamente idêntico ao de Adão.
Atum foi formado a partir da primeira terra que emergiu das águas primordiais. Ele era literalmente uma figura feita do pó da terra. Além disso, como Adão, a primeira mulher saiu dele sem o benefício da relação sexual. Os editores bíblicos confundiram o nascimento de Atum (a divindade criadora de Heliópolis), na mitologia egípcia, com o nascimento do primeiro ser humano.
Foram os crentes que, por meio de uma interpretação demasiado literal da Bíblia, levantaram dúvidas acerca da veracidade da Sagrada Escritura. Em 1650, o teólogo inglês James Ussher, entre outros, deduziu que Deus criou o mundo no ano 4004 antes da Era Comum. Deve ter sido numa segunda-feira, no dia 1º de Abril, dia da mentira!
As discrepâncias entre as palavras da Bíblia e as do teólogo não cessaram de aumentar. Deus criou a Terra há 6 mil anos? Como se explica que os diamantes levam milhões de anos para se formarem? Quem os criou?
Mas os crentes têm a explicação irrefutável. Porque está na Bíblia! Se estiver escrito na Bíblia, aconteceu. Mesmo que existam duas histórias diferentes da criação no Gênesis.
Mas aquele trecho da serpente conversando com Eva era uma alegoria?
Claro que sim! Uma fábula, um mito, uma história bonitinha. Só me responda, caro leitor, como você consegue diferenciar o que de fato aconteceu do que era para ser apenas uma história bonitinha?

HUMANITAS Nº 82 - ABRIL DE 2019 - PÁGINA 5

A diversidade étnica brasileira
Especial do Humanitas

A diversidade da população brasileira aparece nas características culturais como a língua, a religião, a música, os hábitos alimentares e também nas características físicas das pessoas, como a cor da pele, dos cabelos, estatura etc.
Dos portugueses, o país herdou a língua oficial. Porém, a língua portuguesa não é falada da mesma forma por toda a população, pois existem diferenças no linguajar que aparecem, por exemplo, no sotaque das pessoas.
Os sotaques são explicados pela influência dos mais diversos povos. Além dessa diferenciação nos sotaques, encontramos na língua portuguesa falada no Brasil, muitas palavras de origem indígena, árabe e africana.
Muitos e diferentes povos indígenas habitavam o território brasileiro antes da chegada dos colonizadores europeus no século XVI. Cada grupo vivia com sua organização social, tradições, crenças, línguas e costumes.
Os indígenas influenciaram variados hábitos da população branca, tais como tomar banho diariamente e até várias vezes por dia, dormir em redes e consumir mandioca. Quatro milhões de africanos foram trazidos para trabalhar como escravos entre os séculos XVI e XIX e também influenciaram em muitos aspectos da cultura nacional, tais como na música, na religiosidade, na dança e na culinária.
E tem mais: grande parte da população brasileira é formada por imigrantes e seus descendentes.
A imigração para o Brasil ocorreu entre meados do século XIX e XX, com a chegada de muitos portugueses, italianos, espanhóis, alemães, sírios, libaneses e japoneses.
Nas últimas décadas, têm entrado no Brasil, coreanos, chineses, nigerianos, angolanos, bolivianos, peruanos, colombianos etc. Depois dos portugueses, os italianos formaram o grupo mais numeroso de imigrantes.
Importante ressaltar que nos estados brasileiros não há homogeneidade étnica, e sim, a predominância de vários grupos. A distribuição dos principais grupos étnicos pelo território nacional é uma consequência do povoamento das regiões do país.
A região Sul teve os europeus como principais povos ocupantes; na Amazônia, predominam os descendentes indígenas; os afro-descendentes são maioria no Nordeste. Mas existe grande diversidade entre essas regiões. Além de ter ocorrido a miscigenação nesses locais, também aconteceu um grande fluxo migratório entre essas regiões brasileiras.
Durante muito tempo se acreditou que a “mistura” de povos em um só território, fazia do nosso país uma democracia racial, isto é, um país sem racismo, onde todos são tratados da mesma forma e têm as mesmas oportunidades, independentemente de sua origem étnica.
Já foi comprovado que no Brasil há um racismo disfarçado contra negros e índios, levando parte da população a não reconhecer essas etnias.
Com o passar dos anos e com o crescimento das grandes metrópoles o movimento migratório cresceu bastante.
Muitas pessoas saiam das áreas mais rurais ou menos desenvolvidas do Brasil e seguiam em direção às grandes cidades com o objetivo de conseguir melhores trabalhos e melhorar de vida. Hoje já sabemos que desde o período colonial os movimentos migratórios estão associados a fatores econômicos.
Pode-se ver isso no Nordeste no período do ciclo da cana-de-açúcar, em Minas Gerais no ciclo do ouro, e mais tarde o eixo Rio/São Paulo que se tornou o mais novo ponto para os movimentos migratórios, devido ao ciclo do café e ao processo de industrialização.
Portanto, a nossa população se distingue das populações dos demais países latino-americanos, por causa do intrincado processo de colonização e ocupação do território. A mestiçagem ocorrida entre negros, brancos e índios é bastante variável. Antes do contato que esses grupos tiveram uns com os outros no Brasil, cada um deles já tinha sido mesclado.
Os brancos portugueses resultam de uma mistura de ibéricos, romanos, árabes e até mesmo de negros, acontecendo o mesmo com os outros povos brancos que compõem as diversas levas que chegaram ao país em diferentes épocas, ou seja, entre espanhóis, italianos, alemães, eslavos, sírios, libaneses e japoneses.
Não custa lembrar que excluída do processo de desenvolvimento econômico e social do país, a população negra forma, ao lado de grande parte de outras camadas não-brancas (mulatos, índios etc.) um enorme contingente de brasileiros marginalizados.
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Fontes consultadas:
Milton Almeida dos Santos – Diversidade e Globalização (textos diversos);
Ruy Moreira – Sociedade e Espaço Geográfico no Brasil. Constituição e Problemas de Relação

HUMANITAS Nº 82 - ABRIL DE 2019 - PÁGINA 6

A caminho da igreja
Divina de Jesus Scarpim - Colaboradora deste Humanitas é professora e escritora -
Atua em São Paulo/SP

Eu vinha andando pela rua e vi uma mulher indo para a igreja.
O fato de que estávamos perto de uma igreja e ela caminhava naquela direção provavelmente era o indício mais forte de que eu não estava enganada quanto ao lugar para onde ela ia, mas não era o único.
Além disso, havia a aparência sóbria e recatada da roupa e do penteado da mulher, o fato de ela ter um grande crucifixo pendurado no pescoço e até mesmo alguma coisa indefinida no jeito de carregar a bolsa.
Ela tinha uma expressão no rosto que não sei descrever de outra forma que não seja “antecipação de êxtase”.
E quando passou pelo menino, não sei bem por que, fiquei muito interessada em acompanhar sua caminhada. Parei na frente de uma banca de jornal e fingi olhar para as revistas enquanto acompanhava a mulher com o olhar.
Havia um menino sentado na calçada pedindo esmolas, era um menino de talvez 12 ou 13 anos e não tinha o rosto inocente - as crianças de rua perdem a expressão e inocência muito antes dessa idade.
A mulher olhou para ele. Sei que ela olhou porque vi seus olhos pousados no menino por um momento.
Ela olhou, sim, olhou, tenho certeza; mas ela não o viu.
A expressão dela não se alterou depois de olhar o menino no rosto; pode ser impressão minha, mas a “antecipação de êxtase” parecia tornar-se mais intensa e visível à medida que ela mais se aproximava da igreja, e logo depois a vi subindo a pequena escada e entrando na igreja como quem flutua.
Não sou capaz de julgar severamente essa mulher, sei que a indiferença diante da criança que pede esmolas é até um padrão de comportamento em uma cidade onde existem tantas crianças que pedem esmolas.
Principalmente quando a criança que pede esmolas já não tem mais a expressão inocente de uma criança.
Sei que a mulher não pode ser justamente acusada de nada, principalmente porque muitas outras pessoas passavam e olhavam ou não olhavam - com indiferença no olhar e no não olhar - a criança que pedia esmolas.
Eu mesma passei sem dar esmolas para o menino, e também o olhei e talvez alguém pudesse detectar indiferença no meu olhar.
Mas a mulher estava indo para a igreja! Mas a mulher tinha a expressão de “antecipação de êxtase”! O que ela me fez foi só não entender...
Fiquei pensando que o motivo daquela expressão de “antecipação de êxtase” pode ser a certeza de que lá, dentro da igreja, ela vai ouvir que é abençoada, que é especial, que é amada por um ser todo poderoso e que terá a felicidade eterna depois da morte.
Pode ser que a expressão de “antecipação de êxtase” seja porque ela teve uma alegria - ganhou um presente, um carinho, recebeu uma visita, a cura de uma doença.
Então ela vai agradecer e se mostrar como a privilegiada por ter recebido uma dádiva do ser onipotente que a ama.
Ela está quase em êxtase e estará em êxtase quando, junto com os outros fiéis, entoar os cânticos e fizer as orações.
Ela vai gritar louvores e não estará sentindo nada com respeito ao menino que não é inocente e que pede esmolas.
Ele não é especial, ele não recebeu nenhuma graça, ele não tem certeza de felicidade eterna depois da morte.
Ele provavelmente foi ou será levado para o crime sem resistir, ele provavelmente morrerá baleado ou espancado antes ou logo depois dos 20 anos e queimará no inferno por toda a eternidade porque é ou será mau.
Quem se importa?
Deus parece que não.

HUMANITAS Nº 82 - ABRIL DE 2019 - PÁGINA 7

 Desmoronamento humano
Ana Maria Ferreira Leandro – colaboradora do Humanitas -  É escritora e jornalista - Atua
em Belo Horizonte/MG

A lama da vida é cruel porque, em geral, quando desmorona, nem sempre há tempo de correr.
E muitas vezes as sirenes nem tocam.
Na analogia a que me refiro, entretanto, as sirenes “sensoriais” parecem nos dizer o tempo todo: “Cuidado!”.
E mesmo com sirenes “audíveis” tentando avisar, a verdade é que morrem uns e outros ficam, mas o tempo passa e a história continua numa visível “lama”.
E a vida, mestra feroz, não costuma dar muitas “chances”. Se você “errar” e não corrigir suas “bases”, vai haver novos desmoronamentos.
É necessário olhar para si mesmo e se perguntar: “Qual é o meu alicerce”?
As “bases” têm de ser sólidas, porque senão não suportam o “teto”. Isto parece tão lógico, que não se pode entender como se pode “não pensar nisso”.
Ou talvez se “pense”, mas há outras prioridades: o dinheiro (um teto caro) costuma ser o objetivo principal. Não que ele não tenha relevância, mas ele também exige “alicerces”. 
Muitos colocam nesse alicerce até a criminalidade. Mas com vasta experiência de acompanhamento educacional e de ressocialização, nunca vi um criminoso que deseje que “o filho também o seja”.
O desejo de “Poder” de uns vence muitas vezes os alicerces do povo.
Então eu diria que, na realidade, essa barreira foi “alto-montante”, não sofreu as inferências necessárias.
Constituiu-se de “rejeitos” inadequadamente aproveitados.
Ausência de caráter, falta de busca de evolução integral do “ser” e outras faltas em aspectos e valores indispensáveis à resistência da “construção humana”.
Se não entendermos isto individualmente, eis a ”obra” toda se desmoronando.
E o que é pior: leva em sua saga outras vítimas e perdedores inocentes da vida; ou de suas condições de subsistência.
Um povo faz seu alicerce, quanto mais consiga evoluir em sua “essência”.
Quais os ingredientes que ele está usando em seu alicerce?
O que é saudável para cada cidadão será para todos e “ninguém” pode ficar fora dessa construção, porque ela é unificada.
A consistência dos valores que não podem apenas ficar apenas na teoria e nos discursos, mas essencialmente no “modo de viver” é que nos dará a vida que desejamos. A morte tem de ser consequência natural de viver; não a consequência de “não sabermos viver”!
Considero que o sentido é esse: usemos nosso potencial, para promovermos as mudanças que almejamos.
Acreditemos em nós mesmos, enfrentemos com coragem novos rumos, necessários em nossas vidas como pessoas e como cidadãos.
Mudar, evoluir, implica em não ignorar as lições recebidas. Significa absorvê-las realmente como referências não apenas em relação ao sentido pessoal, como também coletivo. A própria trajetória da vida é um processo de “mudanças”.
Um país sempre poderá mudar para melhor enquanto “cada cidadão” se sentir parte deste objetivo.