Qual foi e
quem disse a primeira mentira?
Décio Schroeter - Colaborador deste Humanitas
é escritor - Atua em
Porto Alegre/RS
Esta
é uma pergunta muito usada pelos ateus, céticos e humanistas seculares porque é
interessante e sugestiva. Se perguntarmos a um crente medianamente informado
sobre o Gênesis e a origem do homem segundo a Bíblia, acredito que depois de
pensar um pouco responderia: “A primeira mentira
foi dita por Satanás a Eva”, e nesse caso o crente estaria se referindo a
Gênesis 3:4-5 (Então a serpente disse à
mulher: Certamente não morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que dele
comerdes se abrirão os vossos olhos, e sereis como Deus, sabendo o bem e o
mal...).
Mas
essa é a primeira mentira? Não, a primeira mentira está em Gênesis 2:16-17 (E
ordenou o Senhor Deus ao homem, dizendo: “De
toda a árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque
no dia em que dela comeres, certamente morrerás”. Mentira! No dia em que
Adão comeu desse fruto não morreu.
A
prova está em Gênesis 5:3-5: “E Adão
viveu novecentos e trinta anos, e gerou um filho à sua semelhança, conforme a
sua imagem, e lhe pôs o nome de Set. E
foram os dias de Adão, depois que gerou a Set, oitocentos anos, e gerou filhos
e filhas. E foram todos os dias que Adão viveu novecentos e trinta anos, e
morreu”. Ou seja, ele viveu muito tempo depois que comeu o fruto da árvore.
Como
se pode ver, a primeira mentira foi dita pelo próprio Deus e não por Satanás,
como geralmente se costuma crer. Também sabemos que os crentes possuem milhares
de desculpas para justificar isso, mas, sejamos sinceros, não é algo muito
suspeito?
Segundo
Joseph Campbell, mitologista e professor, “metade
da população mundial acha que as metáforas das suas tradições religiosas são
fatos. A outra metade afirma que não são fatos de forma alguma. O resultado é
que temos indivíduos que se consideram fiéis porque aceitam as metáforas como
fatos, e outros que se julgam ateus porque acham que as metáforas religiosas
são mentiras”.
O poder da
mulher e sua capacidade de gerar vida já foi algo sagrado, mas ameaçava a
ascensão da Igreja Católica, de predomínio masculino. Assim, o sagrado feminino
foi demonizado e considerado impuro. Foi o homem, não Deus, que criou o
conceito de “pecado original”, mediante o qual Eva provou da maçã
(fruta) e causou a queda da raça humana.
A mulher se
tornou uma ramificação do homem. E, ainda por cima, pecaminosa! Os poderosos
dos primórdios da Igreja Católica “traíram” o mundo, propagando mentiras
que desvalorizam o feminino, fazendo a balança pender para o lado masculino.
Conseguiram
converter o mundo do paganismo matriarcal, para “reeducar” no
cristianismo patriarcal os adeptos de religiões pagãs e adoradores de deidades
femininas, durante três séculos, por meio de uma campanha de demonização do
sagrado feminino, eliminando a deusa da religião moderna para sempre.
Tertuliano,
um dos Pais da Igreja que desprezou os gnósticos, assim escreveu a um grupo de
mulheres cristãs:
“Sois a porta do inferno. Sois aquele que persuadiu
aquele que o diabo não ousava atacar... Sabeis que sois cada uma de vós uma
Eva? A sentença de Deus sobre o vosso sexo subsiste nesta época; a culpa,
necessariamente, subsiste também”. (De
cultufeminarum 1.12).
Tradições
egípcias mostram paralelos com o relato de Gênesis, em que o homem é formado da
terra e Deus dá vida em suas narinas. Mas a influência mais importante sobre o
Gênesis foi, provavelmente, o nascimento de Atum. No mito da criação de
Heliópolis, que está por trás das histórias de Adão e Eva, o primeiro ser era Atum,
cujo nome é foneticamente idêntico ao de Adão.
Atum foi
formado a partir da primeira terra que emergiu das águas primordiais. Ele era
literalmente uma figura feita do pó da terra. Além disso, como Adão, a primeira
mulher saiu dele sem o benefício da relação sexual. Os editores bíblicos
confundiram o nascimento de Atum (a divindade criadora de Heliópolis), na
mitologia egípcia, com o nascimento do primeiro ser humano.
Foram os
crentes que, por meio de uma interpretação demasiado literal da Bíblia,
levantaram dúvidas acerca da veracidade da Sagrada Escritura. Em 1650, o
teólogo inglês James Ussher, entre outros, deduziu que Deus criou o mundo no
ano 4004 antes da Era Comum. Deve ter sido numa segunda-feira, no dia 1º de
Abril, dia da mentira!
As
discrepâncias entre as palavras da Bíblia e as do teólogo não cessaram de
aumentar. Deus criou a Terra há 6 mil anos? Como se explica que os diamantes
levam milhões de anos para se formarem? Quem os criou?
Mas os
crentes têm a explicação irrefutável. Porque está na Bíblia! Se estiver escrito
na Bíblia, aconteceu. Mesmo que existam duas histórias diferentes da criação no
Gênesis.
Mas aquele
trecho da serpente conversando com Eva era uma alegoria?
Claro que
sim! Uma fábula, um mito, uma história bonitinha. Só me responda, caro leitor, como
você consegue diferenciar o que de fato aconteceu do que era para ser apenas
uma história bonitinha?
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