terça-feira, 2 de abril de 2019

HUMANITAS Nº 82 - ABRIL DE 2019 - PÁGINA 6

A caminho da igreja
Divina de Jesus Scarpim - Colaboradora deste Humanitas é professora e escritora -
Atua em São Paulo/SP

Eu vinha andando pela rua e vi uma mulher indo para a igreja.
O fato de que estávamos perto de uma igreja e ela caminhava naquela direção provavelmente era o indício mais forte de que eu não estava enganada quanto ao lugar para onde ela ia, mas não era o único.
Além disso, havia a aparência sóbria e recatada da roupa e do penteado da mulher, o fato de ela ter um grande crucifixo pendurado no pescoço e até mesmo alguma coisa indefinida no jeito de carregar a bolsa.
Ela tinha uma expressão no rosto que não sei descrever de outra forma que não seja “antecipação de êxtase”.
E quando passou pelo menino, não sei bem por que, fiquei muito interessada em acompanhar sua caminhada. Parei na frente de uma banca de jornal e fingi olhar para as revistas enquanto acompanhava a mulher com o olhar.
Havia um menino sentado na calçada pedindo esmolas, era um menino de talvez 12 ou 13 anos e não tinha o rosto inocente - as crianças de rua perdem a expressão e inocência muito antes dessa idade.
A mulher olhou para ele. Sei que ela olhou porque vi seus olhos pousados no menino por um momento.
Ela olhou, sim, olhou, tenho certeza; mas ela não o viu.
A expressão dela não se alterou depois de olhar o menino no rosto; pode ser impressão minha, mas a “antecipação de êxtase” parecia tornar-se mais intensa e visível à medida que ela mais se aproximava da igreja, e logo depois a vi subindo a pequena escada e entrando na igreja como quem flutua.
Não sou capaz de julgar severamente essa mulher, sei que a indiferença diante da criança que pede esmolas é até um padrão de comportamento em uma cidade onde existem tantas crianças que pedem esmolas.
Principalmente quando a criança que pede esmolas já não tem mais a expressão inocente de uma criança.
Sei que a mulher não pode ser justamente acusada de nada, principalmente porque muitas outras pessoas passavam e olhavam ou não olhavam - com indiferença no olhar e no não olhar - a criança que pedia esmolas.
Eu mesma passei sem dar esmolas para o menino, e também o olhei e talvez alguém pudesse detectar indiferença no meu olhar.
Mas a mulher estava indo para a igreja! Mas a mulher tinha a expressão de “antecipação de êxtase”! O que ela me fez foi só não entender...
Fiquei pensando que o motivo daquela expressão de “antecipação de êxtase” pode ser a certeza de que lá, dentro da igreja, ela vai ouvir que é abençoada, que é especial, que é amada por um ser todo poderoso e que terá a felicidade eterna depois da morte.
Pode ser que a expressão de “antecipação de êxtase” seja porque ela teve uma alegria - ganhou um presente, um carinho, recebeu uma visita, a cura de uma doença.
Então ela vai agradecer e se mostrar como a privilegiada por ter recebido uma dádiva do ser onipotente que a ama.
Ela está quase em êxtase e estará em êxtase quando, junto com os outros fiéis, entoar os cânticos e fizer as orações.
Ela vai gritar louvores e não estará sentindo nada com respeito ao menino que não é inocente e que pede esmolas.
Ele não é especial, ele não recebeu nenhuma graça, ele não tem certeza de felicidade eterna depois da morte.
Ele provavelmente foi ou será levado para o crime sem resistir, ele provavelmente morrerá baleado ou espancado antes ou logo depois dos 20 anos e queimará no inferno por toda a eternidade porque é ou será mau.
Quem se importa?
Deus parece que não.

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