quarta-feira, 12 de junho de 2019

HUMANITAS Nº 84 - JUNHO 2019 - PRIMEIRA PÁGINA

O médico de Minas Gerais
 que recriava a linguagem

No dia 27 de junho de 1908, há 111 anos, em Cordisburgo/MG, nascia um dos mais controvertidos escritores brasileiros. O jornalista Rafael Rocha (Recife/PE) disserta sobre João Guimarães Rosa e as principais facetas de sua figura humana, mostrando que os textos do médico, diplomata e escritor foram influenciados pelo falar do povo. De acordo com o jornalista, toda a escrita de Rosa foi marcada pela experimentação, buscando a recriação da linguagem.

- PÁGINA 8 -
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Na PÁGINA 7, a jornalista Ana Maria Ferreira Leandro, Belo Horizonte/MG, fala sobre perder o medo de se avaliar
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O escritor gaúcho, Décio Schroeter, diz, na PÁGINA 6, que  o cérebro pode mentir para seu dono
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Pessimismo e realidade é o tema tratado, na PÁGINA 5, pela professora Divina de Jesus Scarpim, São Paulo/SP
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Leia, na PÁGINA 4, o Especial do Humanitas sobre a migração humana na história do mundo

HUMANITAS Nº 84 - JUNHO 2019 - PÁGINA 2

EDITORIAL
Nunca esquecer

Já disseram que os brasileiros não possuem memória. Já disseram que os brasileiros gostam de esquecer momentos ruins do passado e fazer com que esses momentos voltem a fazer parte do seu cotidiano.
Na verdade, não há como ser contra esse tipo de pensamento, pois grande parte da população brasileira prefere viver no ostracismo do conhecimento e acreditar em fantasias e em mentiras inventadas pelos poderosos de plantão.
Neste Humanitas de junho recordamos um homem que conseguiu reinventar a linguagem e que se tornou um dos maiores escritores do Brasil e do Mundo.
Assim, na primeira página colocamos a foto em destaque do grande João Guimarães Rosa, e na página 8 fornecemos aos leitores uma ideia mínima sobre quem foi esse médico, diplomata, poeta e escritor mineiro.
O Humanitas tem memória e gosta de trazer às mentes menos esclarecidas fatos e nomes de um passado recente.
Também lembramos aqui que neste mês temos o Dia Mundial do Meio Ambiente (5 de junho) e que essa data serve para refletir sobre o que estamos fazendo para proteger nossa casa, que é este nosso planeta.
Todos nós somos vítimas das ações de muitos humanos poderosos, sejam ou não governantes do mundo. A destruição do planeta está a cada dia se acelerando devido à ambição de uns poucos, e todos nós somos vítimas das marcas deixadas por esses criminosos.
Agrotóxicos, atmosfera, rios e mares poluídos estão por toda parte, assassinando o planeta Terra com o beneplácito dos governos corruptos.
O meio ambiente em que vivemos, trabalhamos, onde fomos criados e que também nos nutre, deixou de ser saudável e isso é uma realidade insofismável.
Temos de lutar contra isso. Temos de lutar a favor da vida.
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Uma mulher para ser sempre lembrada
Texto extraído da Internet
Imaginem uma mulher no fim dos anos de 1930 se separar do marido já com um filho, ir trabalhar fora e casar-se de novo, numa época em que nem existia o divórcio. Imaginem agora se essa mesma mulher tivesse dado ouvidos a pessoas que diziam: "Não, Aracy, você não pode fazer isso, pois você é mulher e isso é errado aos olhos de Deus".
Paranaense, filha de pai português e mãe alemã, ainda criança foi morar com os pais em São Paulo. Em 1930, Aracy casou com o alemão Johann Eduard Ludwig Tess, mas cinco anos depois se separou, indo morar com uma tia na Alemanha.
Por falar quatro línguas (português, inglês, francês e alemão), conseguiu uma nomeação no consulado brasileiro em Hamburgo, onde passou a ser chefe da Secção de Passaportes.
No ano de 1938, entrou em vigor, no Brasil, a Circular Secreta 1.127, que restringia a entrada de judeus no país. Um acordo assinado entre a Alemanha de Hitler e o governo brasileiro.
Aracy ignorou a circular e continuou preparando vistos para judeus, permitindo sua entrada no Brasil. Como despachava com o cônsul geral, ela colocava os vistos entre a papelada para as assinaturas.
Para obter a aprovação dos vistos, Aracy simplesmente deixava de pôr neles a letra J, que identificava quem era judeu. Nessa época, João Guimarães Rosa era cônsul adjunto (ainda não eram casados).
Ele soube do que ela fazia e apoiou sua atitude e Aracy intensificou aquele trabalho, livrando muitos judeus da prisão e da morte.
Aracy permaneceu na Alemanha até 1942, quando o governo brasileiro rompeu relações diplomáticas com aquele país e passou a apoiar os Aliados da Segunda Guerra Mundial. Seu retorno ao Brasil, porém, não foi tranquilo.
Ela e Guimarães Rosa ficaram quatro meses sob custódia do governo alemão, até serem trocados por diplomatas alemães.
Aracy e Guimarães Rosa casaram-se, então, no México, por não haver ainda, no Brasil, o divórcio.
O livro de Guimarães Rosa "Grande Sertão: Veredas", de 1956, foi dedicado a Aracy.
Sua biografia inclui também ajuda a compositores e intelectuais durante o regime militar implantado no Brasil em 1964.

HUMANITAS Nº 84 - JUNHO 2019 - PÁGINA 3

Refúgio Poético – Cartas dos Leitores – Teste de Xadrez

O jardim
António Ramos Rosa
Portugal– 1924/2013

Consideremos o jardim, mundo de pequenas coisas,
calhaus, pétalas, folhas, dedos, línguas, sementes.
Sequências de convergências e divergências,
ordem e dispersões, transparência de estruturas,
pausas de areia e de água, fábulas minúsculas.

Geometria que respira errante e ritmada,
varandas verdes, direcções de primavera,
ramos em que se regressa ao espaço azul,
curvas vagarosas, pulsações de uma ordem
composta pelo vento em sinuosas palmas.

Um murmúrio de omissões, um cântico do ócio.
Eu vou contigo, voz silenciosa, voz serena.
Sou uma pequena folha na felicidade do ar.
Durmo desperto, sigo estes meandros volúveis.
É aqui, é aqui que se renova a luz.

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O mal e o sofrimento
Leandro Gomes de Barros
Pombal/PB-1865/Recife/PE-1918

Se eu conversasse com Deus
Iria lhe perguntar:
Por que é que sofremos tanto
Quando viemos pra cá?
Que dívida é essa
Que a gente tem pra pagar?
Perguntaria também
Como é que ele é feito
Que não dorme, que não come
E assim vive satisfeito
Por que foi que ele não fez
A gente do mesmo jeito?
Por que existem uns felizes
E outros que sofrem tanto?
Nascemos do mesmo jeito,
Moramos no mesmo canto
Quem foi temperar o choro
E acabou salgando o pranto?
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Velório
Valdeci Ferraz
Recife/PE

Ver-me-ão morto no caixão a sorrir
E dirão, talvez, leve lhe foi a vida
Ou as flores que estão a lhe cobrir
Fazem-lhe cócegas na despedida?

Homenagens? Eu não quero ouvir
Nem canto, nem mesmo reza sentida.
Cubram-me de cravos brancos e a seguir
Leiam meus poemas na hora da partida.

E quando à terra fria eu descer
Muitos olhos marejados hão de ver
Meus versos espalhados pelo mundo.

Saberão que fui apenas um poeta
Cuja vida sempre foi uma porta aberta 
A viver o sentimento mais profundo.
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CARTAS DOS LEITORES

Uma publicação eclética, onde a cultura humana se mescla com temas polêmicos e instigantes. Silvana Rangel Pereira – Rio de Janeiro/RJ
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O Humanitas é o pequeno que satisfaz. Amo este jornalzinho. Augusto Oliveira Monteiro – Belém/PA
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Esperando que o Humanitas continue circulando e trazendo para nosso conhecimento as verdades que a Grande Mídia não divulga. Natália Barros Mascarenhas – Rio de Janeiro/RJ
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“Plante seu jardim e decore sua alma, ao invés de esperar que alguém lhe traga flores”. William Shakespeare

HUMANITAS Nº 84 - JUNHO 2019 - PÁGINA 4

A migração humana na História
Especial do Humanitas

A migração faz parte da história da humanidade. A maior parte dos historiadores concorda que o estilo de vida migratório e o sedentário coexistiram em todos os períodos da história mundial, apesar das fundações legais e administrativas da migração moderna somente terem surgido no final do século XIX.
Mas o que vem a ser migração?
É o movimento de uma pessoa ou de inúmeras pessoas de um país para outro através de uma fronteira política ou administrativa, que deseja se instalar definitiva ou temporariamente em um lugar diferente de seu lugar de origem.
Portanto, migração é um termo amplamente utilizado para diferentes situações e períodos históricos.
Os historiadores conjeturam, por exemplo, que algumas migrações ocorreram na pré-história, no período anterior à escrita, graças às mudanças climáticas.
Porém, naquela época, não existiam países, fronteiras ou controles administrativos como existem dos dias de hoje. Assim entendido, não podemos encaixar esse tipo de migração em uma definição de migração moderna.
Nos dias atuais, as guerras, a insegurança na terra de origem, perseguição política e/ou religiosa, insatisfação com o governo de seu país, esperança de encontrar melhores condições de vida em outro local, são alguns dos fatores que provocam a migração de pessoas.
Existiu ainda um tipo de migração forçada, como a do tráfico de escravos, que eram trazidos principalmente da África, para trabalhar nas Américas.
Com a abolição da escravatura na maior parte das Américas no século XIX, começou outro tipo de migração, também relacionado ao trabalho, mas desta vez voluntária.
Grande parte dos migrantes trabalhadores era originária de regiões menos favorecidas da Europa, como a migração de italianos e alemães para o Brasil.
 Estes, apesar de serem contratados para trabalhar, não recebiam condições favoráveis e o trabalho deles era muitas vezes análogo à escravidão.
A Revolução Industrial foi uma das principais causas da migração moderna.
As novas tecnologias e máquinas fizeram com que muitas pessoas, principalmente nos países mais desenvolvidos, ficassem desempregadas.
Assim, ocorreram migrações em massa para o “novo mundo”, com destaque para os EUA.
Essa nova onda migratória fez com que os países passassem a se preocupar com a regulação da entrada dos imigrantes.
Um dos primeiros a estabelecer critérios para a entrada no país foi os EUA, com o Estatuto Geral da Imigração, em 1882.
A Austrália e o Canadá logo seguiram seus passos.
O período durante e após a Segunda Guerra Mundial é lembrado como uma época de muitas migrações.
Devido às perseguições que atingiram diversos grupos étnicos, o número de refugiados em outros países cresceu. Países como os EUA, Canadá, Austrália e Argentina, tomaram medidas para incentivar o fluxo imigratório para seus países, absorvendo força de trabalho e aproveitando o “boom” econômico pós-guerra.
O número de pessoas que vive em um país diferente daquele em que nasceram se mantém relativamente constante nos últimos anos, em cerca de 3% da população mundial.
As estatísticas da ONU revelam que, em 2015, o número de migrantes internacionais chegou a 244 milhões de pessoas, dos quais 20 milhões eram refugiados.
A Ásia e a Europa comportam dois terços dos migrantes internacionais, sendo que quase metade desses migrantes é originária da Ásia. Problemas econômicos em seus países de origem, conflitos bélicos, especialmente no Oriente Médio, são os fatores preponderantes para o aumento no número de pedidos de refúgio e asilo.


HUMANITAS Nº 84 - JUNHO 2019 - PÁGINA 5

Pessimismo e realidade (Parte 1)
Divina Scarpim colaboradora deste Humanitas é professora e escritora. Atua em São Paulo/SP

“O mundo é um lugar horrível”, declarou Donald John Trump, presidente dos EUA, em seu livro Think Big. “Os leões matam por comida, mas as pessoas matam por esporte”.
E mais: “A mesma ganância ardente que faz as pessoas saquearem, matarem e roubarem em situações de emergência - como incêndios e enchentes - opera diariamente nas pessoas comuns”.
E ainda: Ela se esconde debaixo da superfície e, quando você menos espera, levanta sua cabeça tenebrosa e morde você. Aceite. O mundo é um lugar brutal. As pessoas vão aniquilar você por pura diversão ou para se exibir para os amigos”.
Nunca vou elogiar Donald Trump porque ele é e representa o oposto do que defendo como ética, decência e tudo que vejo como positivo no que se poderia nomear como humanidade.
No entanto, lendo o livro A Morte da Verdade, de Michiko Kakutani, crítica literária norte-americana, ex-crítica literária chefe do The New York Times. na página 191, trombei com o trecho acima e sou obrigada a dizer que me parece muito correto.
O mundo é, sim, um lugar horrível, e as pessoas matam por esporte, discriminam, subjugam e humilham outras pessoas usando os argumentos mais esdrúxulos, contraditórios, falsos e absurdos para “justificar” todo o mal que praticam.
O problema com Donald Trump é que escolheu se tornar aquele ser em lugar de combatê-lo, e o problema com todos os seus apoiadores, admiradores, aliados e defensores é que fizeram a mesma escolha.
A maioria das pessoas que admiram, defendem e invejam os predadores mais poderosos se comportam, nos níveis a que têm acesso, como esse ser humano que Donald Trump descreveu tão bem.
E quando um deles consegue algum poder real, como o governo de um país, o mundo se torna um lugar ainda mais horrível.
Essa é a história da humanidade.
Sei que falar em “as pessoas” para destacar as falhas do animal humano pode parecer que estou generalizando e dizendo que todas as pessoas se enquadram nessa classificação de predador abominável, mas sei muito bem que não é assim.
Estou lendo também o livro Sapiens – Uma breve história da humanidade, do historiador e escritor israelense Yuval Noah Harari.
Na página 26 ele diz que “a tolerância não é uma marca registrada dos Sapiens. Nos tempos modernos, uma pequena diferença em cor de pele, dialeto ou religião tem sido suficiente para levar um grupo de Sapiens a tentar exterminar outro grupo. Os Sapiens antigos teriam sido mais tolerantes para com uma espécie humana totalmente diferente?”.
Ou seja, nós, como animais, não somos tolerantes.
Adotamos o assassinato e o extermínio corriqueiramente em nossa história, possivelmente desde a época em que éramos caçadores coletores.
No mínimo, ajudamos a exterminar os outros Sapiens que dividiram o planeta conosco naquele período.
Isso não quer dizer que não podemos, como indivíduos e como grupos, usar a mesma inteligência que nos distingue – da qual temos nos orgulhado tanto a ponto de, por causa dela, nos julgarmos superiores e mais “evoluídos” do que os outros animais – para chegarmos à conclusão de que não somos superiores aos outros seres humanos, não somos os donos e senhores do planeta com direito à exploração irrestrita da vida que ele contém e podemos e devemos respeitar o outro, seja humano seja animal, e não causar dano ou nos omitirmos diante do sofrimento de outro ser vivo.
Podemos sim e muitos de nós, em vários níveis e de várias formas fazemos isso.
Pertencemos a uma raça animal violenta, danosa e letal, mas alguns de nós nos recusamos a agir de tal forma, e são essas pessoas que tornam possível, depois de tudo, ainda ter alguma esperança na humanidade.





HUMANITAS Nº 84 - JUNHO 2019 - PÁGINA 6

O cérebro pode mentir para seu dono
Décio Schroeter colaborador deste  Humanitas é escritor. Atua em Porto Alegre/RS

É fato. Sim, mentir. Descartar informações, manipular raciocínios e até inventar coisas que não existem. Dessa forma, é possível simplificar a realidade e reduzir drasticamente o nível de processamento exigido dos neurônios.
O cérebro humano é muito bom em construir modelos. Quando estamos dormindo, isso se chama sonhar; quando estamos acordados, chamamos de imaginação, ou, quando é real demais, de alucinação. Quando dizemos que o ser humano constrói seu mundo, queremos dizer: ele constrói seu céu e seu inferno, seus deuses e seus demônios, sua ordem e seu caos.
O homem se constrói a si próprio para em seguida também se autodestruir. O ser humano, simultaneamente, por sua conta e risco, tem criado seu mundo interior e seu mundo exterior. A ciência se esforça para mostrar que estamos menos no comando do que poderíamos supor. Hoje já sabemos que o cérebro pode mentir para seu dono e inventar coisas para iludi-lo.
“São efeitos colaterais do funcionamento normal do cérebro”, diz a neurocientista da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Suzana Herculano-Houzel,.
Pareidolia - Não adianta você perguntar a um crente fundamentalista o que é pareidolia, porque 99% deles não saberão responder. E se você tentar explicar, eles não vão aceitar a explicação.
A pareidolia ocorre quando certa confusão mental no cérebro tenta associar imagens sem significados e de difícil identificação com outra conhecida que parece fazer sentido.
Assim, o que se vê na imagem, depois desse processo, não é o que realmente é, mas sim o que nós fazemos o nosso cérebro pensar que é. Sim, nós temos culpa, porque influímos no processo.
A pareidolia é um tipo de ilusão ou percepção equivocada, em que um estímulo vago ou obscuro é percebido como algo claro e distinto. Por exemplo, mensagens de Alá num tomate (“Há apenas um Deus”), melancia, conchas, numa casca de ovo (escrito: “La ilaha illallah”, que significa “Não há Deus senão Deus”) ou quando alguém vê o rosto de Jesus Cristo nas descolorações de uma torradinha de pão queimada.
A pareidolia é um fenômeno psicológico que envolve um estímulo vago e aleatório, geralmente uma imagem ou som, percebido como algo distinto e com significado. É comum ver imagens que parecem ter significado em nuvens, montanhas, solos rochosos, florestas, líquidos, janelas embaçadas e outros tantos objetos e lugares”.
“Ela também acontece com sons, sendo comum em músicas tocadas ao contrário, como se dissessem algo. A palavra pareidolia vem do grego para, que é junto de ou ao lado de, e eidolon, imagem, figura ou forma”. (Fonte - Wikipédia).
“Assim, para um crente ou mesmo um fiel católico que tem Cristo 24 horas por dia na cabeça (até quando dorme) não é difícil enxergar a imagem dele em paredes mofadas, cascas de árvore, janelas, sanduíches, torradas, pedras, nuvens etc”.
“Os católicos, além de Cristo, costumam enxergar muito as chamadas “Nossas Senhoras”, e outros santos católicos. O que é pior: publicam essas imagens como se fossem milagres e provas da existência de Deus, Cristo e todo um exército de santos. Esquecem-se eles, porém, que a pareidolia se dá com todos os tipos de imagens, não necessariamente religiosas”. (Fonte - Ivo S. G. Reis –http://irreligiosos.ning.com).
Se você teve uma experiência tipo ver ou falar com Jesus, Maria ou Maomé pode ser que acredite firmemente que ela foi real. Mas não espere que o resto de nós acredite, especialmente se tivermos uma familiaridade mínima com o cérebro e seus feitos incríveis.
Nossas mentes possuem uma predisposição natural para a transcendência e o cérebro possui um mecanismo chamado de recompensa.
São grupos de neurônios situados em certas regiões como o septo, que fica bem no centro do cérebro.
Toda vez que fazemos algo física ou mentalmente agradável, qualquer coisa mesmo, esses neurônios causam a liberação de dopamina, neurotransmissor responsável pela sensação de prazer.
As demais áreas do cérebro são inundadas pela dopamina, inclusive aquelas que manejam o autocontrole e as emoções.
Você sente prazer.
E tem vontade de sentir de novo e de novo.
E assim o sistema tem uma influência gigantesca sobre nossas ações e decisões.
Drogas, açúcar, sexo, crenças religiosas, também têm o poder de atuar nessas áreas e podem se tornar viciantes.
O sistema de recompensa foi descoberto nos anos 1950 pelos psicólogos James Olds e Peter Milner, no Canadá.
Todos nós buscamos momentos de “êxtase” nos arquétipos, nos quais “ficamos de fora” do nosso eu.
Se não encontrarmos isso no sobrenatural e na religião, vemos essa sensação na arte, na música, no cinema, na natureza, nos esportes.
O francês Pascal Boyer, utilizando conceitos da psicologia evolutiva, autor do livro Religion Explained (Religião Explicada), pretende provar que:
“As pessoas têm crenças religiosas, porque outros indivíduos de seu convívio as tiveram antes e as passaram adiante. Existe, uma predisposição de nosso cérebro a aceitar algumas dessas ideias”.
O mundo precisa de conhecimento, de gentileza e coragem, de corações e de cérebros francos, livres do medo.
E não é mediante imposturas e sistemas rígidos, ignorantes e de fanáticos, que isso pode ser conseguido no futuro.



HUMANITAS Nº 84 - JUNHO DE 2019 - PÁGINA 7

Perdendo o medo de se avaliar
Ana Maria Ferreira Leandro – colaboradora do Humanitas -  é escritora e jornalista. Atua em Belo Horizonte/MG


Tarde de verão!
Um sol quentíssimo se adentrava pelos vitrais abertos da sala de aula e eu ali, adolescendo e ouvindo as palavras do professor, insistindo na necessidade de “assumir nosso erro quando o cometemos” para nos corrigirmos.
Não resisti.
O sol lá fora me “queimava por dentro” num convite irresistível às delícias do ar livre.
Resolvi ousar e mostrar meu  lado revolucionário, interrompendo o professor com um desafio:
- Sabe professor? Acho que a gente complica muito a vida! Se o problema consiste apenas em se arrepender, melhor então viver a vida “à larga” e no último momento, na hora da morte, se arrepender e pronto...
Como esquecer aquela expressão “transcendental” com que o velho professor me fitou?
Como esquecer aqueles minutos, que antecederam à sua resposta?
Como esquecer a face angustiada e ansiosa para que eu entendesse, quando ele me respondeu lentamente: “- é minha filha... Se houver tempo para uma mudança. Pois arrepender-se não é dizer-se arrependido... É mudar de direção! E nem sempre há tempo! Nem sempre a vida nos dá esse tempo”.
Tantos anos se passaram e ainda mergulho naquela face, que me ensinou a maior lição sobre o que significa evoluir.
Hoje consigo traduzir com clareza o que ele quis dizer. Sei que quando o velho professor me falava de “tempo para se arrepender” não me falava de tempo cronológico. Falava-me de “tempo para não deixar o erro sedimentar-se”.
Se me acostumo muito a algo que deveria rever, corro o riso de ser incapaz de me corrigir. Pois retroceder num caminho que me prejudica é processo exclusivamente “meu”.
Não devo isto a ninguém, que não seja a mim mesmo. Minha vida me pertence e minha capacidade de me auto-avaliar será o condão do meu “renascer para nova vida”.
Quando vejo campanhas, por exemplo, contra o uso de drogas, penso que este deve ser o cerne da questão levantada: “o que é que você, usuário, está fazendo contra si mesmo?”
Assim é a dificuldade de se auto-avaliar, em qualquer desempenho de âmbito profissional ou pessoal. A resistência à auto-avaliação vai reforçando o vício do erro.
E o “tempo” de se rever vai se esgotando. Até que não tenhamos mais forças para enfrentar uma nova direção. 
Insistir que “não há problema a ser resolvido” é fugir da realidade. E fugir da realidade é sempre mais fácil do que enfrentá-la! Mas a realidade é como um trator incontrolável: massacra-nos quando a ignoramos.
Podemos insistir em nossos erros por orgulho; por necessidade de auto-afirmação; porque queremos mostrar “ao outro” que temos razão.
O outro... Sempre o outro!
E eu? O que vou fazer comigo mesmo?
O que sei de mim e do quanto estou me destruindo, na saga de me afirmar custe-me o que me custar?
É muito sério este “custe-me o que me custar!”
Às vezes significa o custo de minha qualidade de vida; quando não a própria vida.
Neste tempo de resistência vou me destruindo, recusando-me a rever o que seria necessário, em detrimento de minha reconstrução, minha  evolução, enfim, minha qualidade de ser enquanto aqui estou. 
Meu velho professor deixou-me uma lição inestimável, que repasso agora com a humildade de assumir, que por  várias vezes precisei relembrá-la, para também me corrigir.
Hoje sei qual o “tempo” que não posso perder: o tempo de me auto-avaliar...
Sem medos. E mudar de direção quando necessário.
Todos os dias da vida  precisamos rever nossas ações.
Não para nos culparmos, mas para nos darmos o direito à busca de novos caminhos e ao alcance da felicidade de viver...


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Adaptação da obra “A Coragem e a Delícia de Recomeçar” Direitos Autorais Biblioteca Nacional nº 390.002/Leandro, Ana M F/2005.