segunda-feira, 26 de maio de 2014

Hipácia - a beldade da filosofia neoplatônica

Texto do jornalista Rafael Rocha – Recife/PE

A principal filósofa de sua época, uma matemática e astrônoma de primeira grandeza, provavelmente a maior intelectual mulher da Antiguidade, Hipácia (370-415 anos da era comum) foi uma das principais figuras da cultura alexandrina. Hipácia nasceu em Alexandria em 370, era filha de Teão, um dos pilares da ciência do século IV. Ela foi criada na atmosfera refinada do centro de estudos da cidade, e obviamente recebeu a melhor educação disponível, incentivada por seu pai nos estudos de matemática e astronomia.
Quando o Serapeum foi devastado pelo bispo Teófilo e o lugar se tornou perigoso demais para estudiosos não cristãos, Teão a enviou a Atenas para estudar filosofia e completar sua educação com o jovem Plutarco, até retornar, alguns anos depois, a Alexandria, onde começou a lecionar. Aos trinta anos, se tornara reconhecida como a líder da escola neoplatônica e era uma figura tão popular entre a intelectualidade da cidade que suas palestras eram ponto de encontro tanto de cristãos como de pagãos.
Hipácia tinha uma multidão de admiradores, dos quais o mais notável era Sinésio, que se tornou bispo de Cirenaica em 410.  Ele lhe escreveu cartas testemunhando sua admiração e respeito e era totalmente influenciado por ela, a quem se referia como mãe, irmã e benfeitora. Não há dúvida de que Hipácia tinha enorme carisma e era bem acima da média em termos de intelecto e aparência. As pessoas falavam de sua eloquência digna de um orador experiente, mas também de sua modéstia e atenção. Não é de admirar que atraísse multidões sempre que aparecia em público. Mas ela estava fadada a ter amigos e inimigos. E o número um dos que a odiavam era o bispo Cirilo, que, infelizmente para Hipácia, tornou-se o chefe da Igreja de Alexandria.
Cirilo não tinha nenhum apreço por quem não fosse 100% cristão ortodoxo, e seu zelo em perseguir quem não seguisse a doutrina à risca não tinha limites. Ele expulsou os judeus de suas sinagogas, os nestorianos de suas Igrejas e os pagãos de seus templos. Pode ser descrito como o primeiro inquisidor da igreja, com quem Tomás Torquemada, o Grande Inquisidor do século 15, bem podia ter aprendido os delitos da profissão. Acrescente-se a isso o problema de Orestes, o prefeito de Alexandria, que era ao mesmo tempo hostil a Cirilo e um firme admirador de Hipácia. Pior ainda: dizia-se que era sua amante, o que apenas aumentava o antagonismo entre os dois homens, especialmente porque não era segredo que a bela neoplatônica encorajava o prefeito em sua oposição ao bispo. A situação ficou insustentável na Quaresma de 415, quando, fora de si de tanta fúria, Cirilo atiçou um grupo de cristãos encolerizados contra ela.
Tudo aconteceu quando Hipácia estava passando em frente ao Cesareum, que na época era uma igreja cristã. Os bandidos a arrancaram da liteira, rasgaram suas roupas e então arrancaram a carne de seus ossos com conchas afiadas e depois queimaram seu cadáver. Com sua bárbara eliminação, Orestes desistiu da luta desigual, o bispo se tornou o senhor absoluto da cidade durante 30 anos e o cristianismo a religião oficial do Egito durante os 250 anos seguintes. O que explica por que se conhece tão pouco sobre uma das mais notáveis mulheres de Alexandria, já que qualquer referência aos filósofos pagãos, e a ela especialmente, foi estritamente proibida e suas obras, destruídas.
Quatorze séculos se passariam até que a civilização ocidental tomasse consciência de sua existência, e, por ironia, isso se deveu à erudição e imaginação de um homem da Igreja, Charles Kingsley, famoso por “Westward ho! e Water babies”. Ele retratou a vida, as qualidades intelectuais, morais e a beleza de Hipácia, e também fez uma descrição notavelmente vívida da Alexandria de sua época e dos eventos que conduziram à sua morte. Seu livro “Hypatia” era um dos romances favoritos da rainha Vitória.
Hipácia era uma filósofa, não uma teóloga. Era uma oradora e não uma pregadora. Era um produto brilhante e carismático da máquina cultural alexandrina. E quando o Cristianismo controlou e sufocou essa máquina, Hipácia foi esmagada junto com o movimento que representava. O neoplatonismo com seu misticismo se tornou clandestino. Hipácia permaneceu enterrada até que Charles Kingsley lhe deu vida novamente. Ao eliminar Hipácia e esmagar o neoplatonismo.
Tomado em seu sentido mais amplo, como a síntese de vários movimentos religiosos do século II ao século V, o neoplatonismo teve enorme influência durante o desenvolvimento da igreja cristã inicial, e pode ser visto como um irmão mais velho, um irmão que a criou e contra o qual o cristianismo se virou e que depois destruiu. Naqueles primeiros tempos, o neoplatonismo e o cristianismo estavam ligados pelo princípio da "redenção", pelo objetivo de livrar a alma da sensualidade e pelo reconhecimento de que a verdade e a salvação não podiam ser obtidas sem ajuda divina. Nunca é demais enfatizar a importância e a influência do neoplatonismo - esse rebento da mitologia grega e do misticismo oriental - sobre o cristianismo, nem que os motivos para atacar sua principal expoente fossem mais políticos, até pessoais, do que religiosos.

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