Divina de Jesus Scarpim – Professora – Rio
de Janeiro –
Especial para o HUMANITAS nº 22 – Maio/2014
– Página 8
Na minha visão, as provas da existência
Na minha visão, as provas da existência
do deus de Descartes carecem de fundamento
lógico quando aplicamos a elas, inclusive,
as conclusões do próprio Descartes
Descartes
dizia aceitar que o mundo tivesse sido criado por um deus, dizia aceitar que,
se um deus existisse, ele seria garantia e suporte de todas as outras verdades.
Mas como saber se um deus existe ou não? Como provar a sua existência se apenas
podia ter a certeza da existência do cogito? Descartes apresentou em seus
escritos três provas da existência de deus. Vamos olhar cada uma delas:
Na primeira, chamada de prova a priori, Descartes procura mostrar que, porque existe em nós a ideia de um ser perfeito e infinito, daí resulta obrigatoriamente que esse ser perfeito tem de existir, uma vez que a existência seria ela mesma uma característica constituinte desse ser perfeito, ou, em outras palavras, que a existência seria parte integrante a priori e sine qua non do ser perfeito. Daí que, para Descartes, se eu tenho em mim a ideia do ser perfeito e se a existência é característica constituinte do ser perfeito, característica sem a qual o ser não seria perfeito, então o ser perfeito existe de fato e obrigatoriamente e o ser perfeito é deus, portanto, um deus existe.
O argumento é bem convincente sem dúvida, só que quando analiso a MINHA ideia de ser perfeito descubro que ela é diferente da ideia de ser perfeito da maioria das outras pessoas, e se começo a investigar a ideia de perfeição que as pessoas à minha volta têm, descubro que, como acreditava Hume a respeito de todas as ideias, a da perfeição também é única e pessoal, ou seja, parece que cada pessoa tem uma ideia de perfeição diferente, muito ou pouco, das demais pessoas.
Disso posso concluir que a ideia de perfeição que tenho não é confiável ao ponto de ser nomeada como A IDEIA DE PERFEIÇÃO única possível, então eu não posso confiar que minha ideia de perfeição seja mesmo a ideia de perfeição e não apenas e simplesmente a ideia de algo que EU acredito ser a perfeição. Com base nesse fato ou se aceitaria que existem bilhões de seres perfeitos, um para cada ideia de perfeição que cada habitante do planeta tem - o que acabaria com a unicidade que é outra característica constituinte de um deus de acordo com os que defendem sua existência - ou a ideia da existência de um deus, provada dessa forma, enfraquece consideravelmente.
Na segunda prova, chamada de prova a posteriori, Descartes conclui que um deus existe pelo fato de a sua ideia existir em nós, e diz que porque possuímos a ideia de um deus como ser perfeito seremos levados a concluir que esse ser realmente existe, afinal, diz ele, não poderíamos ter em nós a ideia de perfeição sendo nós os seres imperfeitos que somos. Ele não aceita a possibilidade de que o menos perfeito (nós) possa ser causa do mais perfeito (a ideia de um deus). Descartes então conclui que deve existir um ser perfeito que é a causa dessa nossa ideia de perfeição. E esse ser perfeito só pode ser um deus.
Pois bem, com base no que eu disse anteriormente, não é confiável que nós tenhamos realmente a ideia de perfeição, uma vez que essa ideia varia tanto de pessoa para pessoa, em função disso posso concluir que essa segunda prova só poderia ter possibilidade de validade no caso de a primeira prova ter sido aceita. Como já afirmei que não aceito a primeira prova e expliquei o motivo desta minha não aceitação, a segunda prova fica sem efeito porque eu mesma - ser imperfeito - posso ter colocado em mim a MINHA ideia de perfeição, que pode não ser na verdade uma ideia de perfeição condizente com algo que realmente fosse perfeito. Minha ideia de perfeição, como procuro demonstrar, não é confiável, portanto, não tem condições de provar nenhuma perfeição e, portanto, não tem como provar também a existência de qualquer tipo de perfeição.
A terceira prova, chamada também de prova a posteriori, é onde Descartes tenta demonstrar a existência de um deus a partir do fato de que não podemos nos conservar, ou manter a vida e a existência de nós mesmos. Diz ele que se nós não podemos garantir a nossa própria existência, e, no entanto, existimos (pelo menos como cogito), é certo que alguém nos terá garantido essa existência e esse alguém só pode ser um deus.
Mas se só reconheço minha existência como res cogito, ou seja, como coisa pensante, então não posso reconhecer como existente meu dedão do pé, minhas mãos, meu coração ou meu corpo como um todo. Além disso, se só posso me reconhecer como res cogito imagino que eu não tenha como saber o que é que constitui esse res cogito que sou, qual é a matéria, qual é a substância que constitui o res cogito? Não posso determinar isso, então não posso mesmo, na verdade, confirmar como realidade a existência do res cogito e muito menos a existência de algo que o tenha provocado.
Não consigo evitar pensar que há uma forte dose de ironia nas provas da existência de deus de Descartes da mesma forma que sinto uma forte ironia na sua frase: “O bom senso é o que há de mais bem distribuído no mundo, pois cada um pensa estar bem provido dele”. Nessa frase fica claro que ele está afirmando a prepotência humana de se achar suficientemente provido de bom senso quando logicamente não está, e para comprovar isso basta que olhemos ao nosso redor.
Parece-me que, impedido que foi de negar o deus, pela época e pela conjuntura em que viveu e até mesmo pela sua própria criação, Descartes encontrou essas explicações claramente falsas para ele, mas, ao mesmo tempo, providas de raciocínio facilmente aceitável pelas instituições religiosas e, principalmente, pelo senso comum. Acho que ele pode bem ter articulado essas “provas” com o fim de salvaguardar sua integridade física e não correr o risco que correu seu contemporâneo Galileu Galilei, cuja trajetória Descartes acompanhou e cujo desfecho sabe-se que influenciou grandemente em seu comportamento e não tem por que não acreditar que deve ter influenciado também o seu pensamento; ou ao menos a forma de expô-lo.
Enfim, para mim e na minha visão, as provas da existência de deus de Descartes carecem de fundamento lógico quando aplicamos a elas, inclusive, as conclusões de Descartes. E se aplico minhas conclusões mesmas chego à prova de que minha própria existência, caso eu me aceite como ser existente com base no Cogito Ergo Sum de Descartes, pode ser usada como prova da não existência de deus.
Minha prova seria, portanto, esta: tenho em mim uma ideia de ser perfeito e a minha ideia de ser perfeito seria um ser que por ser perfeito não criaria nada que fosse imperfeito. Se aceitar a existência de deus tenho de aceitar que fui criada por ele, mas eu sou imperfeita e o ser perfeito do qual tenho a ideia não criaria nada imperfeito, portanto não criaria a mim. Daí que minha existência mesma é a prova de que o ser perfeito não existe e se o ser perfeito é deus, então minha existência é prova de que deus não existe.
Na primeira, chamada de prova a priori, Descartes procura mostrar que, porque existe em nós a ideia de um ser perfeito e infinito, daí resulta obrigatoriamente que esse ser perfeito tem de existir, uma vez que a existência seria ela mesma uma característica constituinte desse ser perfeito, ou, em outras palavras, que a existência seria parte integrante a priori e sine qua non do ser perfeito. Daí que, para Descartes, se eu tenho em mim a ideia do ser perfeito e se a existência é característica constituinte do ser perfeito, característica sem a qual o ser não seria perfeito, então o ser perfeito existe de fato e obrigatoriamente e o ser perfeito é deus, portanto, um deus existe.
O argumento é bem convincente sem dúvida, só que quando analiso a MINHA ideia de ser perfeito descubro que ela é diferente da ideia de ser perfeito da maioria das outras pessoas, e se começo a investigar a ideia de perfeição que as pessoas à minha volta têm, descubro que, como acreditava Hume a respeito de todas as ideias, a da perfeição também é única e pessoal, ou seja, parece que cada pessoa tem uma ideia de perfeição diferente, muito ou pouco, das demais pessoas.
Disso posso concluir que a ideia de perfeição que tenho não é confiável ao ponto de ser nomeada como A IDEIA DE PERFEIÇÃO única possível, então eu não posso confiar que minha ideia de perfeição seja mesmo a ideia de perfeição e não apenas e simplesmente a ideia de algo que EU acredito ser a perfeição. Com base nesse fato ou se aceitaria que existem bilhões de seres perfeitos, um para cada ideia de perfeição que cada habitante do planeta tem - o que acabaria com a unicidade que é outra característica constituinte de um deus de acordo com os que defendem sua existência - ou a ideia da existência de um deus, provada dessa forma, enfraquece consideravelmente.
Na segunda prova, chamada de prova a posteriori, Descartes conclui que um deus existe pelo fato de a sua ideia existir em nós, e diz que porque possuímos a ideia de um deus como ser perfeito seremos levados a concluir que esse ser realmente existe, afinal, diz ele, não poderíamos ter em nós a ideia de perfeição sendo nós os seres imperfeitos que somos. Ele não aceita a possibilidade de que o menos perfeito (nós) possa ser causa do mais perfeito (a ideia de um deus). Descartes então conclui que deve existir um ser perfeito que é a causa dessa nossa ideia de perfeição. E esse ser perfeito só pode ser um deus.
Pois bem, com base no que eu disse anteriormente, não é confiável que nós tenhamos realmente a ideia de perfeição, uma vez que essa ideia varia tanto de pessoa para pessoa, em função disso posso concluir que essa segunda prova só poderia ter possibilidade de validade no caso de a primeira prova ter sido aceita. Como já afirmei que não aceito a primeira prova e expliquei o motivo desta minha não aceitação, a segunda prova fica sem efeito porque eu mesma - ser imperfeito - posso ter colocado em mim a MINHA ideia de perfeição, que pode não ser na verdade uma ideia de perfeição condizente com algo que realmente fosse perfeito. Minha ideia de perfeição, como procuro demonstrar, não é confiável, portanto, não tem condições de provar nenhuma perfeição e, portanto, não tem como provar também a existência de qualquer tipo de perfeição.
A terceira prova, chamada também de prova a posteriori, é onde Descartes tenta demonstrar a existência de um deus a partir do fato de que não podemos nos conservar, ou manter a vida e a existência de nós mesmos. Diz ele que se nós não podemos garantir a nossa própria existência, e, no entanto, existimos (pelo menos como cogito), é certo que alguém nos terá garantido essa existência e esse alguém só pode ser um deus.
Mas se só reconheço minha existência como res cogito, ou seja, como coisa pensante, então não posso reconhecer como existente meu dedão do pé, minhas mãos, meu coração ou meu corpo como um todo. Além disso, se só posso me reconhecer como res cogito imagino que eu não tenha como saber o que é que constitui esse res cogito que sou, qual é a matéria, qual é a substância que constitui o res cogito? Não posso determinar isso, então não posso mesmo, na verdade, confirmar como realidade a existência do res cogito e muito menos a existência de algo que o tenha provocado.
Não consigo evitar pensar que há uma forte dose de ironia nas provas da existência de deus de Descartes da mesma forma que sinto uma forte ironia na sua frase: “O bom senso é o que há de mais bem distribuído no mundo, pois cada um pensa estar bem provido dele”. Nessa frase fica claro que ele está afirmando a prepotência humana de se achar suficientemente provido de bom senso quando logicamente não está, e para comprovar isso basta que olhemos ao nosso redor.
Parece-me que, impedido que foi de negar o deus, pela época e pela conjuntura em que viveu e até mesmo pela sua própria criação, Descartes encontrou essas explicações claramente falsas para ele, mas, ao mesmo tempo, providas de raciocínio facilmente aceitável pelas instituições religiosas e, principalmente, pelo senso comum. Acho que ele pode bem ter articulado essas “provas” com o fim de salvaguardar sua integridade física e não correr o risco que correu seu contemporâneo Galileu Galilei, cuja trajetória Descartes acompanhou e cujo desfecho sabe-se que influenciou grandemente em seu comportamento e não tem por que não acreditar que deve ter influenciado também o seu pensamento; ou ao menos a forma de expô-lo.
Enfim, para mim e na minha visão, as provas da existência de deus de Descartes carecem de fundamento lógico quando aplicamos a elas, inclusive, as conclusões de Descartes. E se aplico minhas conclusões mesmas chego à prova de que minha própria existência, caso eu me aceite como ser existente com base no Cogito Ergo Sum de Descartes, pode ser usada como prova da não existência de deus.
Minha prova seria, portanto, esta: tenho em mim uma ideia de ser perfeito e a minha ideia de ser perfeito seria um ser que por ser perfeito não criaria nada que fosse imperfeito. Se aceitar a existência de deus tenho de aceitar que fui criada por ele, mas eu sou imperfeita e o ser perfeito do qual tenho a ideia não criaria nada imperfeito, portanto não criaria a mim. Daí que minha existência mesma é a prova de que o ser perfeito não existe e se o ser perfeito é deus, então minha existência é prova de que deus não existe.
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