quinta-feira, 22 de maio de 2014

REFÚGIO POÉTICO



Poemas publicados no HUMANITAS nº 23 – Junho/2014


Acaso
Rafael Rocha – Recife/PE

O homem é um acaso de tão grande tamanho
Um lusco-fusco entre bondade e ruindade.
Pensa ser dono do mundo. Faz-se rebanho
Cometendo no planeta toda iniquidade

O homem é a partitura de um erro tacanho
Da natureza e dos átomos desde tenra idade
Criador de um deus a completar o arreganho
Da extrema idiotice e maciça falsidade.

Assim o poeta faz lucrar o seu ofício
Preferindo ser areia e pedra e floresta
A buscar na crença o gozoso benefício.

E o pensamento que a vida lhe empresta
É aquele mínimo ritmo fictício
A fazer deste soneto uma grande festa.
*****
Poema venal
Karline Batista – Aracati/CE

A alma sente sede de coisas etéreas
Então não tornais a alimentá-la
Dessa matéria efêmera
Desse prazer adâmico
Desse beijo orgânico
Porque tua alma sabe das outras realidades
Enquanto tu finges meias verdades
No ledo frêmito de veias minguantes

Diga lá a tua miséria
Que tu não temes a morte
Não lutas contra a sorte
Posto que é vão ir contra o vau
Quando somos apenas gota
Líquida e errante
Do soberbo manancial.
*****
A tatuagem
Antônio Carlos Gomes – Guarujá/SP

Fez a tatuagem...
Era um quadro erótico
Numa simples rosa errática
Andando junto ao mar.
A brisa e seus sentidos
Neste filme pornográfico
De mulher desejante
talvez o altar
Apenas amar...
O quadro mulher
Sentada na areia
A rosa e a sereia
Cantando amar
Valsando no dia
Imaginando o luar.
*****
TRIBUTO A FRANCISCA CLOTILDE

A UM POETA – Francisca Clotilde

Detém a inspiração e o estro ousado
Passa altivo no mundo o indiferente;
Que te importa o sofrer mais apurado
A beleza, a ilusão, o sonho ardente?

Tudo é vão, tudo passa, tudo mente:
Do teu canto o vibrar apaixonado
Disfarça muita vez um tom magoado
E se inspira na dor, na dor somente.

Sofra embora tua alma em desatino
De não ser entendida, atroz destino
Canta e segue a penosa trajetória.

Dilacerem-te os pés rudes abrolhos
Canta à luz da alvorada a cor de uns olhos,
O mar, a imensidade, o amor, a glória.

FRANCISCA CLOTILDE (1862-1935) – Poetisa, contista, dramaturga, romancista, professora e abolicionista. Natural do Ceará, nasceu na fazenda São Lourenço, em Tauá, a 19 de outubro de 1862. Sua poética equilibrava-se na coerência existente entre a emancipação feminina, a política e a liberdade. Criticava a submissão das mulheres ao fogão e a adoração das mesmas à apática vida entre quatro paredes a comentar prendas domésticas. Conclamava todas a se fazerem presentes às atividades políticas e culturais. Resistiu ao sistema imposto pelos “poderosos”, entregando-se às mais ardentes causas abolicionistas. Em 1902, publicou um livro que tratava de um tema bastante polêmico para a época: o divórcio. No dia 5 de março de 1908 chega à cidade de Aracati, atendendo a inúmeros pedidos de personalidades aracatienses e a 9 de março do mesmo ano, funda o Externato Santa Clotilde, junto às filhas Antonieta e Ângela Clotilde. Faleceu em Aracati.
*****
Interrogações
Thiers Rimbaud – Rio de Janeiro/RN

Escapados das loucas tardes de abril
Sublinham um sonho qualquer
A calçada de meu pulso estremece
Rabisco instigante tempo

Eles se foram...
Pablo, Fernando, Rilke,
Whitman, Khayyam, Yeats and others
O que nos resta além das palavras

Caladas no infinito da alma?

(in Veneno Corrosivo, Bigtime Editora, 2014)
*****
Flutuando
Marisa Soveral – Porto/Portugal

Deixa-me entrar dentro da tua cabeça
só vejo flores a rebentar
dos teus cabelos
olha para os meus olhos, devagar
para raiares a minha vida sombria…

Gosto tanto de ti
que chega a ser insano
preciso das tuas palavras
encostadas ao meu ouvido
brisas de calor e arrepios
quero-as tanto
que perco o sono.

Desassossegada
acordo cansada e silenciosa
e tenho em mim
o ruído das palavras
que não ouvi
que apenas pressenti.

Não sei o sítio a que pertenço
O que faço aqui
Porque não estou aqui, nem aí!

Nenhum comentário:

Postar um comentário