Ana Maria Ferreira
Leandro – Belo Horizonte/MG
Levantei-me mais
cedo do que de costume, querendo fazer um desjejum diferente, quem sabe “lá
fora”. “Vou fazer uma linda mesa na varanda, com direito a tomar café olhando
as montanhas”, pensei. E parti para a tarefa de montagem.
Olhei o mamão
papaia na parte mais baixa da geladeira e o vi começando a se enverrugar,
irritado com uma longa espera de ser saboreado. Já molengo para ser picado,
alguns dias mais ele iria para o lixo, coisa que ele não desejava; preferia o
ciclo orgânico humano mais vivo e agitado.
Decidi por fazer
uma vitamina com o pequeno mamão e bananas nanicas. O tom ficou avermelhado
claro, quase róseo e eu gostei do efeito. Coloquei uma pequena mesa na varanda,
forrei com a toalha floral de fundo azul, que não pode faltar e comecei a
complementar o “banquete”, com café quentinho, pãezinhos de cereais e bolo.
Colocadas as
xícaras, fui buscar a jarra bonita da vitamina, eufórica com o ambiente criado,
para uma manhã que eu recriara de repente. As varredeiras lá fora enchiam a rua
com conversas e risos limpos e pensei que afinal tenho muita sorte de ter
varanda, montanhas e mamão papaia enrugado.
Eis que na minha
euforia, já na varanda, deixo escapar o jarro das mãos e todo o líquido
precioso se esparrama pelo piso de ardósia. O jarro feito de vidro forte
temperado não se quebrou, mas o conteúdo estava perdido. Isso fora a
necessidade de uma formidável empreitada de limpeza do piso. Foi quando ouvi
uma das varredeiras gritar para a outra lá fora: “quando perdi meu último emprego na casa dos “bacanas”, pensei que ia
ficar louca, mas logo encontrei este de varredeira de rua e estou feliz! Aqui a
gente até trabalha mais contente!”
Olhei para o chão,
envergonhada de minha frustração com o episódio, que acabara de ser
protagonista. E então lembrei: “ainda me
restam morangos na geladeira. Batidos com bananas resultarão em um líquido
róseo, como o que derramou”.
Parti para a empreitada
da limpeza, com rodo, balde d’água e sabão, reacendendo o brilho da ardósia. A
seguir fui fabricar a nova vitamina rosada, trazendo triunfante entre os braços
apertados, novamente o jarro cheio. Depois chamei meu marido que dormitava,
inconsciente dos meus "vôos" em uma nova manhã e convidei-o para o
desjejum.
Findo o lanche,
postei-me na cadeira a fitar o horizonte e a pensar: “para quantas pessoas mais, ainda existirão morangos?”
“Aquela outra oportunidade, o emprego que
até ficou melhor do que o anterior, que tantas angústias causava? Por que não
há mais aquele mercado, onde o bom profissional tinha alternativas de escolhas,
compatíveis com suas crenças e suas verdades? Para que país caminhamos, sem
reservas de morangos, que produzam líquidos róseos?”
Mas não; não
cabiam estes pensamentos! A varredeira havia me dado a lição do dia: ainda
existem morangos! Eles estão escondidos, talvez na couraça dos nossos medos,
que nos impedem de acordar mais cedo e recriar manhãs. Eles estão sob a fumaça
do terrorismo, que eclode em resposta à escravização humana.
Milênios já se
passaram de história e os homens ainda não aprenderam, que a superação humana
não se faz sobre o outro, mas sobre si mesmo. Ameaças, sempre ameaças, de cá e
de lá. “Nós os destruiremos na surdina”,
ameaça um lado. “Não ousem”, ruge o
outro lado acuado pelo medo, pois eles já viram que também são vulneráveis!
A força e o poder
estabelecendo o pânico, um lado escondido em cavernas, o outro no poder
econômico.
No meio do caos,
morrem inocentes e suicidas, por causas que eles mesmos desconhecem.
Quem sairá
vencedor?
Mas será possível
que não enxergam, que “não há vencedores
nesta guerra?!”
Da varanda de
minha casa fitei de novo as montanhas e perguntei, “até quando elas existirão?” Enquanto assim altaneiras, num rasgo
verde sobre o céu anil, são ainda um privilégio abençoado pela natureza.
Perderemos nós
também, esses morangos que nos restam?
Sabotados por
estratégias de entreguismo, ou pela avassaladora avalanche do crime organizado,
nascido no leito dos problemas sociais, nutridos por uma educação deficiente e
aliado a uma política econômica de atrofiamento ao trabalho e à produção vamos
perdendo nossas reservas de morangos...
Não, não quero
acreditar que perderemos a força, o vigor e a alegria, que sempre marcaram esta
gente brasileira. Seguiremos na luta pela democracia. Uma luta desarmada.
No trabalho, na
capacidade de se sentir feliz em varrer a rua, na página de empregos que tão
poucas oportunidades apresenta, mas quem sabe, lá entre elas, está o “seu morango?”
Não nos
entregaremos e não nos aliaremos à insanidade do falso poder, aquele que julga
se alimentar da supremacia sobre o outro.
Mas não há
felicidade onde existe o egoísmo.
E não há
felicidade individual, de grupos, ou de uma raça, enquanto não for possível
encontrá-la em cada próximo com que cruzarmos, e em cada povo que conosco
dividir o planeta, o universo, ou qualquer outra que seja a instância
existencial...
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