quarta-feira, 2 de outubro de 2019

HUMANITAS Nº 88 – OUTUBRO DE 2019 – PRIMEIRA PÁGINA

O Cavalcanti da arte brasileira

Temas como festas populares, operários, favelas e protestos sociais brasileiros foram retratados para toda a posteridade pelo artista plástico Di Cavalcanti. Ele também gostava de abordar a sensualidade feminina e as suas obras possuíam sentimentos marcantes e expressivos em todos os personagens retratados. Tudo isso, seguindo um estilo artístico marcado pela influência do expressionismo, cubismo e dos muralistas mexicanos (Diego Rivera, por exemplo) - LEIA MAIS NA PÁGINA 8 -
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Na PÁGINA 6, leia a continuação do artigo da escritora Divina de Jesus Scarpim  (São Paulo-SP)
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Na PÁGINA 5, o artigo do escritor Araken Vaz Galvão (Valença/BA)
- O despertar da África IV -
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Na PÁGINA 2, veja o texto do escritor Décio Schroeter (Porto Alegre/RS) sobre o livro Bíblia.

HUMANITAS Nº 88 – OUTUBRO DE 2019 – PÁGINA 2

EDITORIAL
Falta de leitura

Fato lamentável nos dias de hoje é que a falta de leitura adequada está fazendo o ser humano retornar à barbárie. A sociedade que não gosta de ler torna-se pobre mentalmente. O empobrecimento mental será uma catástrofe para o mundo civilizado.
Os livros são os instrumentos capazes de fornecer o saber e, quando não lemos, perdemos o sentido da imaginação e da verdade.
Quando se imaginava que a civilização, nesta era tecnológica, aliando-se à ciência, pudesse ir além, observamos um retrocesso mental, e o povo, principalmente os jovens, contentando-se apenas com o que é exposto através de imagens, pela TV e/ou Internet, ou lendo apenas um livro fantasioso chamado de bíblia.
Já dizia o educador Paulo Freyre que um povo consciente de sua história a partir da leitura, mais facilmente percebe as dificuldades socioeconômicas e culturais da realidade, tornando-se mais apto para o enfrentamento e a libertação
Infelizmente, o hábito de ler nunca foi estimulado no Brasil. Desde a época da colônia somente a elite tinha acesso aos livros, sendo que até hoje as famílias brasileiras não criaram o hábito. Na verdade, livros só servem para decorar estantes. 
Temos de olhar para o céu e admirar as estrelas! Sentir a imensidão do universo e não ter respostas para as perguntas tornou-se a maior dor do homem como animal pensante.
Quem somos? De onde viemos? Essas perguntas nos trazem temor diante daquilo que a mente não consegue compreender. Não temos respostas reais para elas. Nós sabemos que a vida não tem sentido. Antes de nascer éramos Nada e para o Nada voltaremos. Nossas relações com o meio ambiente e com os demais humanos é que oferecem algum objetivo à existência, antes de alcançarmos esse Nada!
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O que é o livro Bíblia?
Colaboração de Décio Schroeter - Porto Alegre/RS

A Bíblia não é um livro científico (coisa que sempre suspeitei, desde que o li pela primeira vez). Mas o que é mesmo? Um conto de fadas que começa com uma cobra falante e termina com um dragão de sete cabeças? Um tratado de pseudo-verdades? Um livro de “auto-ajuda” para quem levou lavagem cerebral desde a infância? Pseudo-Ciência? Astrologia religiosa? Um código-legal ultrapassado? Um código-penal ultrapassado, mesmo para as punições temporais na sociedade de hoje? (que dirá na eternidade!) Um código de ética para o homem de Neantherthal?
A autobiografia de um Senhor “Javé” cruel, vingativo, sedento de sangue, malévolo, injusto, caprichoso, com ciúme paranoico de outros deuses rivais, bipolar, desajustado, psicopata, telepata, controlador mesquinho, milagreiro, egocêntrico, racista, genocida étnico, infanticida, homofóbico, eugenista e narcisista, sadomasoquista, megalomaníaco atendedor de preces?  A autobiografia de um “deus” visivelmente desequilibrado e com mania de perseguição?
A autobiografia de um “deus” que tem inimigos comunistas e satanistas debaixo de sua própria cama? Já sei!! Um teste psicotécnico!?... Não! Um aferidor da idiotice humana?!! Não!
Uma “pegadinha” de programa de televisão? Um livro de piadas de humor negro?
Há quem leve esse livro a sério?! Claro, eu acreditava nisso. Fui cristão durante 50 anos.
Um dos maiores problemas na fé cristã é o fato de o crente não conhecer mitologia, a origem do cristianismo primitivo, o deus da sua própria e das outras religiões. O cristão tem pra si uma amostra grátis de um deus da fé encarnado que "disse" três ou quatro frases interessantes sobre amor e perdão, nada que o Confucionismo ou o Taoísmo já não tivesse dito séculos antes, e esquece todo o resto. E o resto, sendo a descrição detalhada de um imaginário deus que, se existisse mesmo, seria um monstro dos mais malignos que a mente humana já conseguiu criar.
Essa visão de muitos é de que tudo o que é "bom" na Bíblia vem de um deus e o que não é bom vem dos seres humanos que a escreveram. É uma visão bem perigosa de se defender. De repente, esse deus é mesmo um deus mau, assassino, que manda matar a três por quatro, manda exterminar povos, que afoga toda humanidade num dia que acordou de mau humor, um deus que preparou um Inferno, um deus que é mesquinho e injusto, exatamente como está na Bíblia; e aquelas partes que a gente acha "legais", tipo amar o próximo, dar a outra face, sejam justamente as partes inseridas sem a autorização divina. 
A "Ilíada” e a "Odisséia”, apesar de relatarem histórias tão fantasiosas quando as da Bíblia, não são obras consideradas como guias espirituais e morais ou mesmo como verdades absolutas.

HUMANITAS Nº 88 – OUTUBRO DE 2019 – PÁGINA 3

Refúgio Poético – Cartas dos Leitores

O barco na garrafa
Alexandre Guarnieri
Rio de JaneiroRJ

que vento, tormenta, qual
embargo causado pelo caos
atravessou o aço deste barco?
qual a história de seu rapto,
de sua carcaça aprisionada
ao arrecife, pelo casco?

terá afundado em álcool
– em rum, a nau afogada -,
no premente e estrepitoso
jorro da única talagada?
terá sido enfeitiçado
o capitão embriagado
pelo canto da sereia
ou pela água envenenada?

pois saibam, sujos marujos,
que até assim se naufraga,
e onde esperaríamos o gênio
realizando desejos, resta a
miniatura delicada da fragata
prensada através do gargalo,
presa ao interior da garrafa;

haverá outra escolha ( brinquedo
camuflando o medo – mero modelo )
senão estilhaçá-la ao peso
do arremesso ( pequena parcela
do mar ou a própria alma
sequestrada ) a singela peça
do artesanato naval, minuciosamente
trabalhada ou frágil granada
lançada contra a parede da sala?
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Nascido no Rio de Janeiro, em 1974, ALEXANDRE GUARNIERI é um arte-educador habilitado em História da Arte pelo Instituto de Arte da UERJ e mestre em Tecnologia da Imagem pela Escola de Comunicação da UFRJ (ECO). Atuou no Centro Cultural Banco do Brasil e no MAM e produziu materiais didáticos para diversas exposições. Começou na poesia no ano de 1989 e, a partir de 1994 integrou o movimento carioca da poesia falada (CEP 20.000, Cambralha na PUC, Interface na UFF, Revista Urbana no Castelinho do Flamengo, Zn-Zs na UERJ). Foi colaborador do jornal de poesia Panorama da Palavra e teve poemas publicados em jornais e revistas. O seu livro de estreia foi Casa das Máquinas.
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Amor aliado
Ivanise Mantovani
Porto Alegre/RS

Nos apelos da juventude
o tempo adiantou nossos relógios.
Apressamos o passo, era preciso.
Amiúde convidávamos Maiakovski à nossa mesa,
queríamos mudar a visão do mundo.
Eu, um breviário no bolso,
Ele, coesão à doutrina de Marx.
Plantamos inquietudes,
colhemos morangos verdes.
Senti suas mãos, de ternura,
aquecerem as minhas.
E, assim, a vida passou voraz.
Cúmplices sorríamos à troca de olhares.
Entardecendo, nos bastamos atenuando ideais.
Hoje a paixão acomodou-se ao crepúsculo
e nos lençóis o amor se fez paz.
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IVANISE THEREZA MANTOVANI - Natural de Caxias do Sul/RS. Reside em Porto Alegre. Graduada em Administração de Empresas. Possui prêmios literários no país e no exterior, destacando-se: Talentos da Maturidade, patrocinado pelo Banco Real, em 1999 e 2000. Tem trabalhos publicados em Portugal, França e Itália. Pertence à Academia Literária Feminina - Porto Alegre/ RS, Cadeira número 18.
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CARTAS DOS LEITORES

Tudo tem seu nascer e seu fim. Para nossa tristeza, isso aconteceu com o Humanitas impresso. Uma perda lamentável.  Anne Cristine – Olinda/PE

HUMANITAS Nº 88 – OUTUBRO DE 2019 – PÁGINA 4

A antiguidade da vida no universo
Rafael Rocha é jornalista e editor deste Humanitas. Atua na cidade do Recife/PE

Diversos cientistas em todo o mundo usaram, nos últimos anos, a biologia e a computação para sugerir uma nova hipótese: a de que a vida teria surgido primeiro que o planeta Terra. E também que poderia ter se originado fora do sistema solar.
Para chegar a essa conclusão, os geneticistas Alexei Sharov e Richard Gordon usaram a chamada Lei de Moore para calcular a evolução da complexidade da vida na Terra.
A Lei de Moore é a teoria computacional que sugere que os computadores dobram sua capacidade de processamento a cada dois anos. Usando essa lei, hoje, podemos voltar a década de 1960, quando o primeiro microship foi produzido.
No estudo, a Lei de Moore sugeriu que a vida orgânica surgiu muito antes do que o planeta Terra – muito antes até mesmo do nascimento do sistema solar, que se formou há aproximadamente 4,5 bilhões de anos (incluindo todos os planetas). Segundo os pesquisadores, a vida teria surgido há pelo menos 10 bilhões de anos, época em que o universo ainda era muito jovem.
A lei de Moore mostra que é matematicamente possível que a vida tenha antecedido a Terra, mas a hipótese ainda é tema de debates. Os geneticistas garantem que sim, que essa hipótese é plausível.
Segundo eles, quando nosso sistema solar estava se formando, formas simples de vida podem ter sido trazidas para os planetas. Essa hipótese é chamada panspermia.
Vale frisar que os cálculos feitos pelos cientistas não servem como evidência de que a vida tenha surgido há tanto tempo, pois é impossível ter certeza de que a complexidade orgânica evoluiu de forma constante durante bilhões de anos.
O geneticista Alexei Sharov acredita que existem muitos elementos hipotéticos no argumento, mas para uma visão mais ampla, esses elementos são necessários.
A hipótese também levanta outras ideias. Se a complexidade da vida evoluiu de forma constante, então a evolução social e científica de qualquer forma de vida em qualquer canto do universo teoricamente deve ser igual à dos humanos.
Assim, é possível que existam algumas civilizações avançadas até mesmo em nossa galáxia, a Via Láctea.
Muitos cientistas já admitem que há uma chance de que a vida na Terra tenha sido trazida do espaço, por meio de colisões de rochas espaciais como cometas e asteroides. 
Para apoiar mais essa hipótese, estudo apresentado na revista americana Science indica que metade da água do nosso planeta deve ser mais antiga do que o Sistema Solar.
Isso aumenta a possibilidade de existir vida fora de nossa galáxia, a Via Láctea.
Pesquisadores da Universidade de Exeter, na Grã-Bretanha, realizando experiências químicas com as possíveis moléculas de água formadas no Sistema Solar e as que existiam antes, descobriram que entre 30 e 50% da água consumida hoje em dia é cerca de um milhão de anos mais antiga do que o Sol.
Levando-se em conta que a água é elemento crucial para o desenvolvimento da vida na Terra, os resultados desse estudo podem sugerir que a vida existe em outro lugar mais além da nossa galáxia. 
Tais resultados aumentam a possibilidade de que alguns planetas fora de nosso Sistema Solar possuam as condições propícias e grandes recursos de água que permitam a existência de vida e sua posterior evolução.

HUMANITAS Nº 88 – OUTUBRO DE 2019 – PÁGINA 5

O despertar da África IV
Araken Vaz Galvão é escritor e membro da Academia de Artes do Recôncavo. Atua em Valença/BA

A África atravessou toda a primeira metade do século XX, sem grandes modificações em sua situação política. Curiosamente, foi o fim da II Grande Guerra quem criou as condições que permitiram o início do processo que foi chamado de descolonização. É verdade, porém, que ao término da I Grande Guerra algumas modificações surgiram no mapa africano, entretanto essas modificações diziam respeito aos interesses das potências europeias, uma vez que a Alemanha perdera suas colônias, e isso significou apenas, para os africanos, a mudanças de amo.
Mas, como as conseqüências da II Grande Guerra influenciaram na África, uma vez que as potências europeias – Reino Unido, França e Bélgica – tinham saído como vencedoras? Os fatores foram vários. Vamos aos principais. Os países coloniais tinham sido vergonhosamente derrotados – com exceção do Reino Unido, que apenas ficara de joelho –, frente a Alemanha de Hitler, e só saíram vendedores graças a aliança com Estados Unidos com a União Soviética. A França e o Reino Unido tiveram ainda que lançar mão de soldados recrutados entre os povos colonizados – leia-se, entre os cidadãos de segunda classe, como eram considerados os africanos e demais filhos daqueles povos –, evidenciando, dessa forma, que eles não eram invencíveis.
Embora aliados dos Estados Unidos, a este país não interessavam colônias, e sim nações nominalmente independentes (tipo a Libéria) que ficariam a mercê dos poder econômico daquela potência que saíra da II Grande Guerra como a principal do planeta, a quem a própria Europa – países vencedores e vencidos – ficaram subordinados.
Sucedia em pleno século XX, algo similar ao que se dera com os países das colônias portuguesas e espanholas no século XIX, na América, que contara com a simpatia da Grã-Bretanha, em suas lutas pela independência para se tornarem dependentes economicamente daquele país, então o mais poderoso do mundo.
O último, dos principais fatores, tinha um lado negativo. Para derrotar os países do Eixo – Alemanha, Itália e Japão – foi fundamental a participação da União Soviética, que saíra daquela guerra como a segunda maior potência do planeta. Mas com sérias veleidades de ser a primeira. Se a propaganda dos Estados Unidos falava em liberdade, mas uma liberdade etérea, patrocinada pelos países que tinham sido os senhores das colônias, a soviética falava em libertação dos povos tendo esses mesmo povos como protagonistas da sua liberdade. Somava-se a essas proposições ideologias, a presença dos países não-alinhados – que Índia, Iugoslávia, Indonésia e Egito eram os principais – pregando a não aliança automática nem com os EUA, nem com a União Soviética.
Dentro desse quadro, com ambas as potências vencedores da II Grande Guerra lutando por influenciar o processo de libertação nacional dos povos africanos, contando ainda com a influência dos países não-alinhados, que procuravam novos adeptos para reforçar a posição do grupo, deu-se todo o processo de libertação nacional dos povos colonizados.
Esse conflito de interesses políticos entre as duas maiores potências mundiais, foi chamado de Guerra Fria, do qual os conflitos relacionados com a descolonização foram apenas uma pequena parte.
Por outro lado, o processo de libertação dos povos colonizados, do ponto de vista ideológico recebeu uma acentuada influência das idéias da esquerda, com maior ou menor participação da União Soviética e alguma influência da China.
O movimento que recebeu em sua ocasião maior repercussão na imprensa ocidental foi o dos Mau-Mau, no Quênia, liderados por Jomo Kenyatta.
Região conhecida pelo homem desde épocas imemoriais, o que hoje é o Quênia foi dominada, por volta do século VIII, da era cristã, pelos árabes. Os portugueses, ao conquistarem Mombaça, em 1505, expulsando os árabes, tornaram-se os senhores da região. No final do século XIX, porém, os britânicos, sob o pretexto de acabar com a pirataria, apoderaram-se de toda a região.
Estavam assentados ali desde o século X os bantos, entre eles os kikuyu, que viviam no interior, e os massais (povo nilótico) que vivia (e ainda vive) próximo à fronteira com o que hoje é a Somália. Os alemães foram os primeiros europeus a se fixarem na região, o fizeram entre os povos da tribo manyika, isso por volta de 1848. A construção de uma ferrovia, ligando o porto de Mombaça e as férteis terras do lago Vitória (concluída em 1902), o que facilitou pois abriu as portas à dominação britânica. Em 1920, reafirmado o domínio da Grã-Bretanha, o Quênia foi transformado de colônia em protetorado.
A partir de 1921, surge a Associação Central dos Kikuyu, (reformulada em 1925), que passou também a reivindicar participação no poder. 
Neste contexto que surge a rebelião dos Mau-Mau, que teve a participação majoritária dos kikuyu e que foi liderada por Jomo Kenyatta, que se transformaria em uma guerra prolongada (de 1952 até 1960), resultando na independência em dezembro de 1963. Jomo Kenyatta, que até então chamado de terrorista pela imprensa ocidental, foi o seu primeiro presidente.

HUMANITAS Nº 88 – OUTUBRO DE 2019 – PÁGINA 6

Pessimismo e realidade (Parte 5)
Divina Scarpim colaboradora deste Humanitas é professora e escritora. Atua em São Paulo/SP

Como grupo, o ser humano é um animal nocivo e predador que divide a própria raça em grupos denominados "nós" e "eles", sendo "eles" sempre aqueles a serem inferiorizados, subjugados e eliminados.
Enquanto houver essa divisão - e não vejo nenhum indício de que um dia ela deixará de existir - continuaremos sendo o animal que mata, tortura, extermina, aniquila.
Por mais que a gente queira pensar de forma mais "bonitinha" e achar que somos "legais", a verdade é que somos tão terríveis que a história de toda comunidade humana está plantada sobre a aniquilação completa ou parcial de outra comunidade humana e, se não tiver razão para o ódio, a gente inventa uma. É isso que somos... humanos.
Como indivíduo sempre tem os que são pacíficos - se viverem em condições tais que permitam sobrevivência sem luta – mas, como raça, somos mais irracionais do que racionais, ou melhor, usamos a racionalidade mais para matar do que para salvar.
Na história das civilizações não houve período de paz. Investimos mais na fabricação de armas do que na de remédios, e mesmo quando fabricamos remédios o fazemos mais por ambição do que por interesse em salvar vidas.
Justificamos assassinato, tortura, preconceito usando invenções confortáveis chamadas religião, pátria e propriedade.
Como disse George Carlin e como demonstrou Saramago: Para nossa civilização tão “comportadinha" voltar à barbárie, basta apagar a luz.
Há os que defendem as crenças como solução contra todos os males, mas não acho que isso seja sempre positivo. Não mesmo!
As três maiores religiões do planeta têm cada uma delas uma história de horror que é responsável pelo fato de terem se tornado tão grandes.
E o que é válido para religião, é válido para outras crenças também.
A política, o esporte, a família, a economia.
Nossas crenças estão sempre entremeadas pelo "nós" - melhores, superiores, merecedores, eleitos - e o "eles" - inferiores, indignos, subjugáveis, indesejáveis, assassináveis.
Tem crença positiva? Sim, com certeza!
Mas essas são em geral bastante menos efetivas, menos gerais, mais frágeis e facilmente "porosas" às justificativas que conseguimos encontrar para agirmos de acordo com as crenças mais danosas.
Uma pessoa pode acreditar sinceramente que somos todos iguais, que todos os seres humanos têm alma e podem alcançar o "reino de deus", seja qual for esse deus, mas pode, ao mesmo tempo, acreditar que os homossexuais são aberrações e culpados pelas agressões que sofrem; que estrangeiros devem ficar em seus lugares, não importa quanto esses lugares tenham se tornado perigosos; que matar um adolescente que pulou um muro com um tiro certeiro é algo perfeitamente válido e até louvável.
As exceções, que queremos que existam e às quais queremos e temos a pretensão de pertencer, não são insignificantes muito menos destituídas de importância, mas são, em geral, perdedoras.
E são perdedoras porque lutam contra o que é padrão e o padrão é apelar para todo e qualquer artifício, por mais injusto, danoso e desonesto que seja, porque tudo nós podemos justificar com incoerências e artimanhas egoisticamente elaboradas.
Para isso nossa racionalidade funciona maravilhosamente bem! O ser humano é capaz de coisas lindas sim, mas é bem mais capaz ainda de coisas horríveis.
As guerras, os genocídios, as organizações criminosas travestidas de igrejas e nações, a história toda com seus rios de sangue que nunca pararam de jorrar mostram sempre que não somos uma raça da qual uma pessoa que faça parte dessa minoria perdedora possa se orgulhar.
E ter consciência dos fatos pode ser bom: conhecer o inimigo, nesse caso, é conhecer a si próprio.
Sinto certa vergonha de me colocar como uma espécie de exceção.
Tenho consciência de que devo estar sendo prepotente em vários aspectos sobre os quais sequer tenho consciência.
Sou professora e continuo lutando, não desisto e ainda tenho esperança de, pelo menos, ajudar a fazer com que a quantidade de exceções não diminua muito.
Acho essa luta muito válida e necessária. Mas o fato é que não me deixo enganar, sei que somos animais e animais terríveis. 
Pode parecer contraditório o que estou dizendo, mas é justamente essa consciência da nossa animalidade que me dá força e vontade de continuar, e que, principalmente, me torna alerta para não permitir que esse lado animalesco determine minhas ações.

HUMANITAS Nº 88 – OUTUBRO DE 2019 – PÁGINA 7

A polêmica questão do vice-reino do Prata

Especial do Humanitas.

As numerosas colônias espanholas fundadas na América foram congregadas em quatro grandes vice-reinos, para melhor serem administradas.
Um desses vice-reinos, o do Prata, era constituído pelos seguintes países: Argentina, Uruguai, Paraguai e parte da Bolívia.
A língua, castelhana, a religião católica e a administração eram unificadas e uniformizadas, o que não impediu o surgimento de espírito regional diferentes e o predomínio de sentimentos regionalistas.
O surgimento de ditadores desejosos de unificação após a independência e as lutas partidárias pelo poder entre Buenos Aires e Montevidéu fomentaram franca oposição do Império do Brasil, que interveio nos países do Prata.
Havia naqueles países, dois partidos inimigos: o partido federalista, ou colorado, e o unitário, ou blanco, que discutiam sobre a organização interna sem chegarem a um acordo. 
A partir de 1828, o Uruguai iniciava sua vida de nação livre e organizava seu primeiro governo regular a cargo de D. Frutuoso Rivera.
Na Argentina o governo é derrubado e instaurada a anarquia, que a 6 de dezembro levaria ao poder, como ditador, o caudilho D. Juan Manuel de Rosas, chefe do partido federalista, isto é, colorado, que desejava conquistar o Uruguai e, não viu com bons olhos a eleição de Rivera.
Para tanto, lança contra este, D. Juan Antonio Lavalleja e D. Manuel de Oribe, que promoveram numerosos levantes contra o governo oriental (uruguaio). Em combate com Oribe, Rivera é derrotado e Montevidéu é cercada. Rosas bloqueia o porto com a intenção de fazer a cidade se render pela fome.
O não reconhecimento do bloqueio portuário pelo recém-chegado ministro brasileiro, Cansanção de Sinimbu, a retirada dos navios franco-ingleses, as invasões de Oribe ao Rio Grande, roubando gado, ferindo e matando gaúchos levam a suspensão das relações entre Brasil e Uruguai no dia 30 de setembro de 1850. Era a guerra!
O Império brasileiro se aproveitando do rompimento entre Rosas e seu aliado, Urquiza, governador de Entre-Rios, firmou com este chefe e com os de Corrientes e Uruguai, a 29 de maio de 1851, uma aliança defensiva e ofensiva.
Em 19 de junho inicia-se a travessia do Rio Uruguai e, a 8 de outubro, Oribe capitula. Isso faz com que 28 mil homens ataquem a Confederação Argentina em meados de 1852, travando a batalha decisiva a 3 de fevereiro em Monte Caseros, onde tomaram parte 4 mil brasileiros, sob o comando do general Manoel Marques de Sousa, futuro conde de Porto Alegre.
Rosas foi inteiramente derrotado e teve de abandonar o governo de Buenos Aires, retirando-se para Londres, onde morreu, em 1877. 
As lutas não cessaram com a derrota de Oribe e Rosas. Durante muito tempo ainda, os dois partidos - blancocolorado – continuaram disputando o poder.
É eleito no Uruguai, para presidente, D. Juan Francisco Giro, do partido blanco, porém não durou muito no governo. Após um ano foi obrigado a fugir e para governar o país foi eleita uma junta de três membros: Lavalleja, Rivera e D. Venancio Flores, chefes dos colorados.
Após a morte dos dois primeiros, resta Venâncio Flores que não tem pulso para governar. O governo seguinte, de Bernardo Berro, tenta a pacificação, sem sucesso. Em abril de 1863, Flores, refugiado na Argentina, invade o Uruguai com o apoio de Bartolomeu Mitre, presidente da Confederação Argentina.
Novamente, invasões nas estâncias gaúchas e reclamações para que o Império do Brasil tomasse providências.  Foi enviado José Antonio Saraiva a Montevidéu, que apresentou um ultimato ao presidente uruguaio, resultando no rompimento das relações entre Brasil e Uruguai, em 30 de agosto de 1864.
Em outubro, o almirante Tamandaré assina com Flores o acordo secreto de Santa Lúcia e as tropas imperiais iniciam o processo de ocupação de Montevidéu, comandadas pelo marechal Mena Barreto. 
A 2 de fevereiro de 1865, rendia-se a fortaleza uruguaia, criando-se um Governo Provisório, dirigido por Venâncio Flores, sendo reconhecidas as reclamações brasileiras.

HUMANITAS Nº 88 – OUTUBRO DE 2019 – PÁGINA 8

A sensualidade artística do pintor Di Cavalcanti
Especial do Humanitas

Com um estilo artístico marcado pela influência do expressionismo, cubismo e dos muralistas mexicanos (Diego Rivera, por exemplo), o artista plástico Di Cavalcanti se tornou um marco na arte brasileira.
Suas abordagens estavam ligadas a temas típicos do Brasil como, por exemplo, o samba, mas o cenário geográfico brasileiro e suas figuras humanas e suas praias também foram bastante retratados pelo seu pincel.
Não deixaram de faltar os temas sociais, como festas populares, operários, favelas e protestos sociais. O artista gostava de abordar a sensualidade feminina brasileira e as suas obras possuíam sentimentos marcantes e expressivos nos personagens retratados.
Emiliano Augusto Cavalcanti de Albuquerque e Melo, mais conhecido como Di Cavalcanti, nasceu na cidade do Rio de Janeiro, em 6 de setembro de 1897, e faleceu em 26 de outubro de 1976, na cidade do Rio de Janeiro.
No ano de 1917, faz a sua primeira exposição individual para a revista A Cigarra, seguindo-se, no ano de 1919, a ilustração do livro Carnaval, de Manuel Bandeira.
Na Semana de Arte Moderna de 1922 foi um dos participantes, expondo 11 obras de arte e elaborando a capa do catálogo.
Tornou-se correspondente do jornal Correio da Manhã, na cidade de Paris, no ano de 1923, retornando ao Brasil dois anos depois.
Em 1926, faz a ilustração da capa do livro O Losango de Cáqui, de Mário de Andrade e nesse mesmo ano participa como ilustrador e jornalista do jornal Diário da Noite.
Filiou-se ao Partido Comunista do Brasil, no ano de 1928, e em 1934 vai morar na cidade do Recife, em Pernambuco.
Volta a residir na Europa entre os anos de 1936 e 1940.
Em 1937, recebe medalha de ouro pela decoração do Pavilhão da Companhia Franco-Brasileira, e, em 1938, trabalha na rádio francesa Diffusion Française.
Faz uma exposição individual de retrospectiva no IAB de São Paulo, no ano de 1948, e em 1953 é premiado como melhor pintor nacional na II Bienal de São Paulo.
Publica um livro de memórias com o título de Viagem de minha vida, em 1955; e na Mostra de Arte Sacra na Itália, recebe, em 1956, o primeiro prêmio.