A construção do estado ateísta
Antonio Vides Júnior - Jornalista
Extraído de www.ateus.net
A moral cristã é impiedosa
com os ateus. Nossa imagem não goza de status social e, invariavelmente, somos
considerados estranhos e pecaminosos. É a nossa herança. Revoltadas, legiões de
ateus se formam para proclamar sua aversão aos preceitos cristãos e da Igreja.
O que é isso? Guerra?
A crença no além está enraizada na
sociedade. Não podemos odiar aqueles que creem. Estaremos odiando nossos pais e
irmãos.
Mas como vamos combater esse
preconceito com a nossa filosofia? -perguntarão alguns.
Não vamos. Em vez disso, vamos encarar o
problema de frente e mostrar a eles que nossa filosofia é, antes de tudo,
baseada na humildade.
É difícil ser ateu. Encaramos a morte com
olhos aterrorizados. A despeito de todos saberem que ela é inevitável, nós a encaramos como o fim de
tudo. Não esperamos nada do além-túmulo. Não estamos indo ao encontro de um
deus ou à eternidade.
Quando nos apaixonamos, não esperamos viver no paraíso
ao lado de nossas esposas ou maridos.
Tornar-se-á célebre a frase de Ann Druyan, viúva de
Carl Sagan, um dos ateus mais respeitáveis desta geração, ao falar da despedida
do marido, no leito de morte: Nenhum
apelo a Deus, nenhuma esperança sobre uma vida pós-morte, nenhuma pretensão que
ele e eu, que fomos inseparáveis por vinte anos, não estávamos dizendo adeus
para sempre.
São palavras terríveis, mas as sabemos
verdadeiras. A consciência ateísta, quando surge, nos eleva a uma percepção
única. Passamos a enxergar a vida como a areia da ampulheta, que escorre
inexoravelmente pela fenda. Não importa o quão correta tenha sido sua vida, no
fim, a morte reina absoluta.
Pessimista! -
gritam alguns frente a essas verdades. Já estamos acostumados. Somos ateus,
percebemos nossa limitação.
Somos feitos de carne e osso. Até agora,
nem sinal de um espírito. Estamos vazios.
Ora, retire do cristão a promessa da vida
eterna. De que adiantaria, então, seguir os passos do deus dele?
A religião está impregnada da relação
oferta-procura: Eu sou bonzinho, o Senhor me dá a vida eterna.
Sou humilde, por isso viverei para sempre.
Se a promessa da vida eterna fosse
arrancada do homem, este se revoltaria contra deus. Viveríamos num universo
burlesco e trágico, onde os crentes tornar-se-iam os ateus.
Ainda assim, é difícil afirmar que a
crença em um deus está associada à ignorância. Conheço pessoas inteligentes de
todas as religiões. A questão é mais profunda do que isso. Está ligada ao resto
de instinto de sobrevivência que temos.
Nossos ancestrais hominídeos eram caçados
por animais maiores. Quase sempre, a morte era sangrenta e violenta.
Desenvolvemos um medo natural por ela. Tínhamos medo de muitas coisas. Tínhamos
medo da escuridão quando o Sol morria no horizonte ou quando as montanhas
rugiam, soltando fumaça.
Divinizamos aqueles fenômenos, não podíamos
explicá-los, pois éramos pouco mais que macacos desengonçados, aprendendo a
explorar suas potencialidades. Chorávamos quando tínhamos que abandonar um
parente doente na migração do inverno ou quando os nossos velhos eram expulsos
da aldeia por não servirem mais ao trabalho. Não havia enterros nem piedade.
Estabelecemos moradas para os deuses no
alto das montanhas e no fundo do mar. Quando subimos ao cume das montanhas e
cruzamos o oceano em toscos barcos de junco, empurramos os deuses para outras
esferas. Nossos aviões nunca atropelaram um anjo, nunca encontramos um par de
chifres enterrados no quintal de casa.
Arrebatados para o céu ou ao inferno, os deuses nunca mais foram acessíveis.
Hoje, são vistos apenas em
igrejas, por um número seleto de escolhidos que têm a sorte de ver, mas nunca a
chance de registrar.
A humanidade tem criado seus pesadelos,
mas também tem realizado sonhos sociais, materiais, divinos. Cientistas, no século
XX, fizeram mais pela Humanidade (esta sim, com maiúscula) que um deus fez em
toda sua história. Empurramos a presença de deus cada vez mais para o fundo do
poço. Não rezamos mais para curar as doenças. O papel de deus diminui a olhos
vistos. Aprendemos a creditar nossos problemas à nossa incompetência ou
ignorância, já não existem demônios a assombrar nossos feitos.
Essa é a verdadeira essência da humildade.
Sabermos nosso papel na história do desenvolvimento humano, a consciência do
fim cada vez mais próximo. Não há divindade no nosso nascimento, não há
milagres no cotidiano.
A revelação da humildade chega ao ateu
quando este encara, pela primeira vez, a inigualável sensação de livrar-se da
culpa da religião e do pecado natural. Não precisamos de religião para aprender
a humildade. Quando encaramos nossas limitações, ela surge naturalmente.
Ficamos assombrados pela nossa ignorância e pela impotência frente a todo
conhecimento.
Talvez a religião seja um mal necessário.
Quando deixarmos de ser julgados pelos crentes, talvez possamos expor nossas
ideias com clareza. Neste dia, a humildade poderá florescer entre os homens,
fundamentada em princípios humanos, e não em fantasias envolvendo deuses e
demônios. Será um tempo, então, onde todos poderão considerar-se irmãos, pois
ninguém esperará mais da vida do que seu semelhante.
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