A prisão de Lupicínio Rodrigues na
ditadura militar
Texto original de autoria
de José Ribamar Bessa Freire
Extraído do jornal Diário
do Amazonas
A Comissão da Verdade não sabe, mas depois do golpe
militar de 1964, o compositor gaúcho Lupicínio Rodrigues (1914-1974) foi preso
e permaneceu vários meses trancafiado, primeiro no Quartel da Polícia do
Exército no centro de Porto Alegre e, depois, no presídio da Ilha da Pintada,
apesar de nunca ter tido qualquer atividade política. Lá, foi humilhado,
espancado e torturado, teve a unha arrancada para não tocar mais violão e
contraiu uma tuberculose agravada pelo vento frio do rio Jacuí.
Quem me confidenciou isso foi um dos filhos de
Lupicínio, Lôndero Gustavo Dávila Rodrigues, também músico, 67 anos, que hoje
trabalha como motorista na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ). O fato é pouco conhecido, pois Lupicínio não gostava de tocar no
assunto. Preferiu silenciá-lo. Morria de vergonha. “E a vergonha é a herança maior que meu pai me deixou”, cantava ele
em “Vingança”, um grande
sucesso dois anos antes de sua morte.
De acordo com Lôndero, o pai precisou mesmo de muita
coragem e fé para amargar a prisão, onde em vez de tainha na taquara ou peixe
assado no espeto de bambu, comeu foi o pão que o diabo amassou. Tudo isso por
causa de uma ligação pessoal dele com Getúlio Vargas, relação que acabou sendo
herdada, posteriormente, por Jango e Brizola.
Lupicínio, que já era um compositor consagrado em
1950, fez um jingle para a volta de Getúlio Vargas, com aquela marchinha de
carnaval de Haroldo Lobo, que foi também gravada por Francisco Alves: “Bota o retrato do velho outra vez / Bota no
mesmo lugar / o sorriso do velhinho / faz a gente trabalhar”.
Vargas já gostava das músicas de Lupicínio antes de o
compositor ser sucesso nacional. Por isso, decidiu bancar a entrada do
compositor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Lupicínio, que
havia cursado só até o 3º primário, foi nomeado bedel da Faculdade de Direito,
onde trabalhou também como porteiro.
– Um belo dia – conta Lôndero – Lupicínio caiu na
farra, virou a noite e saiu direto dos bares para a Universidade. O reitor deu
um flagrante nele, quando o encontrou bêbado na portaria. Deu-lhe um esporro,
publicamente, humilhando-o na frente de alunos, professores e colegas. No dia
seguinte, Lupicínio entrou com um requerimento com letra de samba, que seu
filho sabe de cor:
– Magnífico Reitor, que a tua sabedoria e soberba não
venha a ser um motivo de humilhação para o teu próximo. Guarda domínio sobre ti
e nunca te deixes cair em arrogância. Se preferires a paz definitivamente,
sorri ao destino que te fere. Mas nunca firas ninguém. Nestes termos, pede
deferimento. Assinado: Lupicínio Rodrigues, porteiro.
Não sabemos se o reitor deferiu o requerimento e a
partir de então passou a sorrir ao destino sem ferir ninguém. O certo é que
Lupicínio deixou o emprego na Universidade e foi cantar em outra freguesia, em
bares, restaurantes e churrascarias, onde aliava trabalho com boemia.
Foi ele, Lupicínio, quem compôs o hino tricolor do
Grêmio, do qual era um fanático torcedor, ganhando com isso um retrato no salão
nobre do clube.
Depois do suicídio de Vargas, em 1954, Lupicínio, já
consagrado nacionalmente, continuou mantendo relações amistosas com Jango e
Brizola, que também admiravam sua música. Por conta disso, foi preso e
torturado, segundo seu filho.
Autor de grandes sucessos como “Felicidade foi-se embora”, “Vingança”, “Esses
moços”, “Nervos de aço”, “Caixa
de Ódio”, “Se acaso você
chegasse”, “Remorso” e
dezenas de outros, Lupicínio compôs “Calúnia”,
cuja letra pode muito bem ter outra leitura, quando sabemos de sua prisão e a
forma como foi feita: “Você me acusa /
Mas não prova o que diz / Você me acusa / De um mal que eu não fiz/ A calúnia é
um crime / que Deus não perdoa / Você vai sofrer / aqui neste mundo”.
A letra de “Calúnia”,
gravada por Linda Batista em 1958, termina com Lupicínio rogando: “Eu não quero vingança / A vingança é pecado
/ Só a Justiça Divina / Pode seu crime julgar”.
Mas se prevalecer a letra de “Vingança”, cantada também por Linda Batista e depois por
Jamelão, os torturadores da ditadura não terão paz e serão punidos pela
Justiça:
“Você há
de rolar como as pedras que rolam na estrada, sem ter nunca um cantinho de seu
pra poder descansar”.
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