Texto do jornalista Celso Lungaretti – São Paulo/SP
Publicado no HUMANITAS nº 22 – Maio/2014
A ditadura de 1964/1985 acobertou
todos os
crimes praticados pelas multinacionais.
O êxito da operação de acobertamento se deveu
ao fato de que os mortos eram irrelevantes
Uma falácia
das viúvas e discípulos da ditadura de 1964/1985
são as comparações desfavoráveis à democracia que espalham entre os desinformados.
Dizem que a economia era mais
próspera nos anos de chumbo, que havia menos violência e
corrupção etc. Existem pessoas idosas que avalizam esse besteirol, ajudando a
desnortear as novas gerações. No fundo, suas opiniões são influenciadas pelas saudades
dos tempos em que eram vigorosos e tinham muita vida pela frente. Tudo lhes
parecia melhor então.
Ademais, o homem comum tende a
engolir a propaganda oficial e a não reparar quando notícias lhes são sonegadas
pela censura. A percepção do povão que aplaudia
o sanguinário ditador Médici quando ele ia posar de torcedor no estádio do
Maracanã era bem diferente da de quem conhecia as entranhas, os escândalos
abafados e os esqueletos nos armários do regime.
Hoje, por exemplo, há total
transparência nos casos de produtos e serviços que por quaisquer imperfeições
causam prejuízos e/ou malefícios aos consumidores. Nos estados policiais as
informações adversas são sonegadas dos cidadãos com a maior sem cerimônia.
Foi o que fez a ditadura
militar brasileira com as mortes de trabalhadores rurais intoxicados por
defensivos agrícolas e com uma epidemia de meningite, nas duas vezes,
pretensamente, para evitar o pânico.
O primeiro episódio eu
acompanhei de perto. Trabalhava na agência de comunicação empresarial que, em
meados da década de 1970, foi contratada por uma multinacional para evitar que
repercutissem as seguidas ocorrências de envenenamento de cidadãos brasileiros
nas áreas rurais.
Tratava-se de um contrato tão
crapuloso que a conta era integralmente paga pela tal multinacional, mas o
trabalho executado em nome de uma associação fantasma de fabricantes de
agrotóxicos, criada às pressas para servir como fachada.
Coube-me redigir material de
imprensa destacando a notável contribuição
que os defensivos agrícolas estariam dando à agricultura brasileira e
os terríveis prejuízos que sua eventual
proibição acarretaria: fome da população, desemprego no campo, queda das
exportações.
Eram textos aparentemente
inocentes, mas não o que estava por trás deles: o raciocínio desumano de que,
para evitarem-se tais prejuízos, poderiam ser relevadas as mortes que foram
noticiadas. Muitas outras não o foram, com a conivência das otoridades.
Pior ainda era o papel do dono
da agência, um pioneiro da área de assessoria de imprensa e eventos (por ele
designados como promoções), que se incumbia pessoalmente de
falar com os jornalistas influentes, distribuindo subornos e fazendo ameaças
veladas.
Repugnava-me
vê-lo elogiar a si próprio por haver conseguido sustar a publicação de uma
notícia sobre mortes de trabalhadores rurais que já descera para a gráfica de
um jornalão. “Eu parei as rotativas”, proclamava orgulhoso, para os empresários
interessados nos seus serviços.
Ele considerava
que haver levado a bom termo uma incumbência tão infame lhe servia como
galardão profissional. E não é que os empresários entravam na dele?! Eu
assistia e ficava pensando: "Este é o verdadeiro milagre brasileiro, o
amoralismo e os embustes impunes".
Participar
dessa empreitada foi a primeira grande decepção de minha carreira jornalística.
Muitas outras viriam, com os
interesses econômicos prevalecendo sobre o bem comum e eu nada podendo fazer
para remediar a situação, sob pena de perder o emprego e ficar com o mercado de
trabalho fechado para mim.
Então, graças à censura sobre a
imprensa e aos mecanismos de persuasão dos poderosos, o povo
brasileiro deixou de ser informado dos riscos que corria quem
utilizasse agrotóxicos. E ocultar-lhe mortes por envenenamento registradas em
todo o País certamente contribuiu para que outras ocorressem.
A tal multinacional jamais
ousaria proceder de forma tão leviana no Primeiro Mundo: para reduzir custos,
não investira no treinamento adequado dos usuários de seus produtos. Mesmo
assim, com a conivência do regime militar, conseguiu apagar o
incêndio: ministrou rapidamente os cursos que deixara de promover no
momento exato e não arcou com as multas astronômicas que lhe seriam aplicadas
em qualquer país cujo governo zelasse pelos governados. De quebra, indenizou
mal e porcamente, por baixo do pano, as famílias das vítimas, que não tiveram
como arrancar reparações à altura da gravidade das perdas que sofreram.
Ficou-me também a impressão de
que o êxito da operação de acobertamento se deveu ao fato de que os mortos
eram irrelevantes. Se os finados não fossem os coitadezas
dos grotões, certamente aquelas mortes acabariam tendo maior repercussão.
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