quarta-feira, 30 de abril de 2014

Revisitando a ditadura de 1964/1985: tempo de embustes



Texto do jornalista Celso Lungaretti – São Paulo/SP
Publicado no HUMANITAS nº 22 – Maio/2014

A ditadura de 1964/1985 acobertou todos os
 crimes praticados pelas multinacionais.
O êxito da operação de acobertamento se deveu
ao fato de que os mortos eram irrelevantes
 Uma falácia das  viúvas e discípulos da ditadura  de 1964/1985 são as comparações desfavoráveis à democracia que espalham entre os desinformados.
Dizem que a economia era mais próspera nos anos de chumbo, que havia menos violência e corrupção etc. Existem pessoas idosas que avalizam esse besteirol, ajudando a desnortear as novas gerações. No fundo, suas opiniões são influenciadas pelas saudades dos tempos em que eram vigorosos e tinham muita vida pela frente. Tudo lhes parecia melhor então.
Ademais, o homem comum tende a engolir a propaganda oficial e a não reparar quando notícias lhes são sonegadas pela censura. A percepção do  povão  que aplaudia o sanguinário ditador Médici quando ele ia posar de torcedor no estádio do Maracanã era bem diferente da de quem conhecia as entranhas, os escândalos abafados e os esqueletos nos armários do regime.
Hoje, por exemplo, há total transparência nos casos de produtos e serviços que por quaisquer imperfeições causam prejuízos e/ou malefícios aos consumidores. Nos estados policiais as informações adversas são sonegadas dos cidadãos com a maior sem cerimônia.
Foi o que fez a ditadura militar brasileira com as mortes de trabalhadores rurais intoxicados por defensivos agrícolas e com uma epidemia de meningite, nas duas vezes, pretensamente, para evitar o pânico.
O primeiro episódio eu acompanhei de perto. Trabalhava na agência de comunicação empresarial que, em meados da década de 1970, foi contratada por uma multinacional para evitar que repercutissem as seguidas ocorrências de envenenamento de cidadãos brasileiros nas áreas rurais.
Tratava-se de um contrato tão crapuloso que a conta era integralmente paga pela tal multinacional, mas o trabalho executado em nome de uma associação fantasma de fabricantes de agrotóxicos, criada às pressas para servir como fachada.
Coube-me redigir material de imprensa destacando a  notável contribuição que os defensivos agrícolas estariam dando à agricultura brasileira e os  terríveis  prejuízos que sua eventual proibição acarretaria: fome da população, desemprego no campo, queda das exportações.
Eram textos aparentemente inocentes, mas não o que estava por trás deles: o raciocínio desumano de que, para evitarem-se tais prejuízos, poderiam ser relevadas as mortes que foram noticiadas. Muitas outras não o foram, com a conivência das  otoridades.
Pior ainda era o papel do dono da agência, um pioneiro da área de assessoria de imprensa e eventos (por ele designados como promoções), que se incumbia pessoalmente de falar com os jornalistas influentes, distribuindo subornos e fazendo ameaças veladas.
Repugnava-me vê-lo elogiar a si próprio por haver conseguido sustar a publicação de uma notícia sobre mortes de trabalhadores rurais que já descera para a gráfica de um jornalão. “Eu parei as rotativas”, proclamava orgulhoso, para os empresários interessados nos seus serviços.
Ele considerava que haver levado a bom termo uma incumbência tão infame lhe servia como galardão profissional. E não é que os empresários entravam na dele?! Eu assistia e ficava pensando: "Este é o verdadeiro milagre brasileiroo amoralismo e os embustes impunes". 
Participar dessa empreitada foi a primeira grande decepção de minha carreira jornalística.
Muitas outras viriam, com os interesses econômicos prevalecendo sobre o bem comum e eu nada podendo fazer para remediar a situação, sob pena de perder o emprego e ficar com o mercado de trabalho fechado para mim. 
Então, graças à censura sobre a imprensa e aos mecanismos de persuasão dos poderosos, o povo brasileiro  deixou de ser informado dos riscos que corria quem utilizasse agrotóxicos. E ocultar-lhe mortes por envenenamento registradas em todo o País certamente contribuiu para que outras ocorressem.
A tal multinacional jamais ousaria proceder de forma tão leviana no Primeiro Mundo: para reduzir custos, não investira no treinamento adequado dos usuários de seus produtos. Mesmo assim, com a conivência do regime militar, conseguiu  apagar o incêndio: ministrou rapidamente os cursos que deixara de promover no momento exato e não arcou com as multas astronômicas que lhe seriam aplicadas em qualquer país cujo governo zelasse pelos governados. De quebra, indenizou mal e porcamente, por baixo do pano, as famílias das vítimas, que não tiveram como arrancar reparações à altura da gravidade das perdas que sofreram.
Ficou-me também a impressão de que o êxito da operação de acobertamento se deveu ao fato de que os mortos eram irrelevantes. Se os finados não fossem os coitadezas dos grotões, certamente aquelas mortes acabariam tendo maior repercussão.

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