Viver não dói
Araken Vaz
Galvão é escritor e membro da Academia de Artes do Recôncavo. Atua em
Valença/BA
Viver
não dói – encontrei, em meu velho arquivo um texto atribuído a Carlos Drummond
de Andrade, com este título – o que me levou a pensar: só dói quando se vive. Ou
seja, quando, ao viver, se ama e, ao se amar, não se é correspondido. Afinal,
como diz a canção do meu tempo: “Amar é
viver/ é um doce prazer embriagador, invulgar”.
Ora, se amar é viver, não se conseguindo
dar amor a quem se ama, sofre-se. Fora dessa situação, viver realmente não dói.
O único problema é que, se o que a canção
diz é verdade, a falta de amor muitas vezes causa uma dor dos diabos...
Foi pensando sobre isso que me lembrei da
moça da farmácia – aquela que fica na esquina da rua Visconde do Monte Santo e
da rua da Fonte do Boi, no Rio Vermelho, em Salvador, Bahia, minha amada terra.
Mas quem fica na dita esquina, claro, é a farmácia.
Que nenhum leitor desavisado vá pensar que
seja a moça em questão quem ali fica, balançando a bolsa – no exercício do que
o lugar-comum classifica como o mais antigo dos ofícios –, já que a moça fica
apenas dentro do estabelecimento comercial, trabalhando como balconista.
Assim sendo, ela, além do trabalho
atendendo no balcão, tem todo o ar de quem é casada, por estar aparentando
gravidez, ainda que isso não signifique nada além de já ter copulado.
Em nossos dias, para se praticar tal
atividade, não mais se necessita dos sagrados laços do matrimônio, que os
tempos são outros, bem diferentes daqueles existentes quando fui jovem.
Mas, dirão meus eventuais leitores, o que a
moça – que deve ser uma senhora – tem a ver com a vida doer ou não?
É que fui comprar um medicamento; e me
atendeu outra moça, que se atrapalhou ao ler a receita.
Aquela atendente, a que estava grávida,
para ajudar à colega, disse gentilmente:
– É para o coração – completando, para ser
bem clara – É um remédio para o coração, não é mesmo, senhor? – Esta última
frase evidentemente dirigida a mim.
Naquele dia acidentalmente, estava de bom
humor. Tinha saído da reunião semanal do Conselho Estadual de Cultura, Bahia,
passara na farmácia, com intenção de ir depois ao supermercado comprar algo
para merendar no hotel. E junto com as compras da merenda, tencionava levar
também um litro de uísque.
Beberia umas duas doses e, no outro dia,
traria a sobra para minha casa, onde, no fim de semana, amenizaria o peso da
vida que já não dói tanto, porque, com a idade, o que mais me atormenta são as
articulações, principalmente as do joelho, ainda que isto também faça parte da
vida.
Porém, tudo isto são divagações. Estava na
farmácia e de bom humor, então lhe respondi:
– O remédio para o coração, senhorita, é o
amor – não tinha notado ainda sua incipiente gravidez, por isso não a chamei de
senhora – Os remédios são para corrigir os males causados, ao coração, pelo
amor.
Ela e outros dos seus colegas de trabalho
olharam-me com evidente surpresa. “Esse
velho é maluco” – devem ter pensando. Ao que fui obrigado a esclarecer, do
alto dos meus anos, à guisa de amortecer o impacto de minhas palavras:
– No meu tempo era assim. Não sei nos dias
atuais...
Fez-se um longo segundo de
perplexidade. Um outro balconista, esse do sexo masculino, quebrou-o – o
silêncio, é claro –, dizendo, um tanto sem propósito:
– Já estão até querendo instituir o dia do
sexo, não é mesmo?
– Não estou bem seguro se sexo tem algo a
ver com amor, ou vice e versa... – acrescentei – No entanto, sempre tendo por
base o meu tempo, quando todo dia era dia de sexo; bem, fico a matutar o quão
desagradável seria a instituição desse único dia.
Sabia que estava falando um português pouco
popular, e que grande parte do ar de perplexidade, que via estampado no
semblante dos atendentes daquela farmácia, devia-se ao meu linguajar.
– Imagino que iriam colocar uma câmara,
dessas de segurança, para fiscalizar a observância dos preceitos legais.
Continuei.
– Já pensaram a pessoa estar em sua casa e,
de repente, bate à porta um fiscal. “O
senhor não tem praticado sexo ultimamente, senhor”. E o cidadão, meio sem
jeito, justifica-se: “Bem... Quero
dizer... O tempo anda curto. Muito trabalho... Quando se volta à casa tem-se o
computador, a internet, os bate-papos virtuais... Os amigos ligam... o
celular... Um joguinho, sabe como é...”
E o fiscal: “Compreendo perfeitamente, Mas é preciso observar o que prescreve a
lei. Dê-se por advertido”.
E o cidadão, muito a contragosto, olha para
a mulher, que se encontra assistindo a novela, e diz: “É, meu amor, melhor a gente obedecer, eles podem proibir os jogos on-line, cortar o nosso crédito do
celular e até bloquear as novelas. Vamos ter que fazer o sacrifício de... Você
já tomou banho?”
Mas aí, já me encontrava no táxi, a caminho
do hotel, no bairro da Pituba (em Salvador, é claro), com planos de, antes,
passar em uma delicatessen, vulgo loja de conveniências, para comprar a
bebida que os escoceses legaram ao mundo para que os homens suportem as dores
da vida...
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